Direito ao esquecimento e interesse público

Data do Julgamento:
03/07/2018

Data da Publicação:
06/07/2018

Tribunal ou Vara: Tribunal de Justiça de São Paulo - TJSP

Tipo de recurso/Ação: Apelação Cível

Número do Processo (Original/CNJ): 1064971-80.2014.8.26.0100 e 2153598-52.2014.8.26.0000

Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Des. Enéas Costa Garcia

Câmara/Turma: 1ª Câmara de Direito Privado

Artigos do MCI mencionados:

Artigo 2º; artigo 3º, I; artigo 7º, I e X; artigo 19, § 1º

Ementa:

"Apelação. Internet. Ação de obrigação de fazer destinada a bloquear palavras-chaves em provedor de buscas na internet. Invocação do direito ao esquecimento e lesão aos direitos de personalidade. Inadmissibilidade. Entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que inexiste fundamento normativo para atribuir aos provedores de aplicação de buscas na internet obrigação de implementar o direito ao esquecimento. Inexistência de retomada de fato pretérito a justificar invocação do direito ao esquecimento, tratando-se de questão atual de interesse jornalístico. Utilização de sistema automatizado de pesquisa que não constitui, por si só, lesão aos direitos de personalidade. Recurso improvido."

  • Victor Hugo Pereira Gonçalves
    Victor Hugo Pereira Gonçalves em 23/02/2017

    Em apertada síntese, o acórdão em questão, em recurso de Agravo de Instrumento, tratou superficialmente sobre a questão do direito ao esquecimento em confronto ao interesse público de ter acesso à informação, o que fará, talvez, num suposto recurso de apelação. Mas tentarei fazer um aprofundamento das questões apresentadas e, num pequeno exercício de futurologia, apontar os desafios da sentença e do futuro acórdão sobre este caso.

    Recentemente, o mundo do direito brasileiro, influenciado por discussões estrangeiras e pela onipresença das tecnologias de informação e comunicação, percebeu a necessidade de discutir e colocar em prática o direito ao esquecimento como garantia aos direitos à privacidade, intimidade e vida privada.

    Aliás, desde então, não só o mundo jurídico, os cidadãos também começaram a se preocupar com as informações trafegadas na internet, em razão do seu alto potencial de geolocalização de quem emite a opinião, como emite, de onde emite, bem como da exposição da intimidade e vida privada, enfim, informações que não poderiam ser obtidas antigamente no mundo analógico, mas que, hoje, são facilmente obtidas. Hackers com apenas alguns dados públicos já conseguem levantar 80% das informações pessoais e privativas de um determinado usuário de redes sociais.

    Tal situação periclitante do uso massivo dos dados pessoais para vários fins alheios às vontades dos usuários, que 94% deles, numa pesquisa recente feita pelo DataFolha, consideraram a privacidade trazida pela criptografia ponto a ponto do Whatsapp como fundamental. A privacidade e a proteção da intimidade tornou-se, em tempos de big data, de suma importância para a construção dos direitos humanos frente a empresas e Estados, que vigiam cada passo e pensamento.

    Parte da luta dos usuários de internet contra o grande fluxo de dados está sendo deslocada para uma construção doutrinária constitucional alemã da década de 1970: o direito ao esquecimento. Naquele tempo, o direito ao esquecimento analógico tinha outro significado e outra proposta. O caso foi o de Lebach contra uma televisão alemã, que foi assim transcrito por Débora Nunes de Lima Soares de Sá:
     

    "Trata-se ainda de uma questão pouco debatida pelos tribunais brasileiros. O caso mais conhecido e citado do Direito ao Esquecimento é o Lebach, julgado pelo Tribunal Constitucional Alemão. Em 1969 ocorreu uma chacina de quatro soldados alemães. Três pessoas foram condenadas, sendo dois à prisão perpétua e o terceiro condenado a seis anos de reclusão. Poucos dias antes do terceiro deixar a prisão (por cumprir a pena), um canal de televisão alemão voltou a citar o crime ocorrido há anos atrás, retratando o crime através da dramatização por pessoas contratadas e ainda, apresentando fotos reais e os nomes de todos os envolvidos. Em virtude disso, foi pleiteada uma tutela liminar para impedir a exibição do programa. O Tribunal Constitucional Alemão entendeu que a proteção constitucional da personalidade não admite que a imprensa explore, por tempo ilimitado, da pessoa do criminoso e de sua vida privada. Assim, o canal restou impedido de exibir o documentário."
     

    Neste caso concreto, o direito ao esquecimento foi aplicado corretamente, pois Lebach já havia cumprido sua pena. A matéria jornalística poderia impedir a ressocialização completa do indivíduo na sociedade, gerando animosidade e rancor contra ele e, principalmente, aumentando o sentimento de vingança do crime que ele cometeu e já cumpriu. Tal decisão, num mundo analógico, foi efetivada e o direito de Lebach foi assegurado.

    Pergunta que se faz é: num mundo em que zilhões de dados são produzidos, trafegados e analisados nas redes de telecomunicações, em que as informações possuem a tendência de serem perenes, a decisão alemã de 1970 seria efetiva neste contexto? Cabe lembrar que a decisão alemã não tem a intenção de apagar a História do crime. A decisão tenta fazer com que o crime não reviva nas mentes das pessoas, não aumente o sentimento de vingança e dificulte a ressocialização daquele que cumpriu a pena. Com a internet, este crime nunca morre. Ele sempre viverá, desde que se associe o crime à pessoa.

    Ao se partir do pressuposto que tudo está na internet e pouca coisa fora dela, a retirada deste conteúdo poderia afetar a própria manutenção da memória do fato, da História. Será que a efetividade do direito ao esquecimento pode afetar a memória do fato em si? Cabe lembrar um fato importante: 10% do conteúdo da internet é perdido para sempre a todo ano. Será que o direito ao esquecimento pode apagar o nosso direito à memória do fato, da História? Se aplicarmos o direito ao esquecimento, tal como orientado pelo enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, "a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento", estaríamos protegendo a memória daquilo que tem de se guardar? A aplicação do direito ao esquecimento, no âmbito da tutela da dignidade da pessoa humana, foi feita sem a mínima discussão acadêmica necessária e o uso absolutamente imprescindível da multidisciplinariedade em outros campos do conhecimento, principalmente do socorro dos historiadores. Tal enunciado, sem estes cuidados, em vez de ser alívio da tutela da dignidade da pessoa humana, pode ser o seu calvário epistemológico.

    O mundo do direito está pensando somente num lado da complexidade que envolve direito ao esquecimento mais direito à memória e à verdade. Se houver possibilidade de se apagar da História um determinado fato por vontade de um indivíduo, sem se analisar a busca da memória e da verdade, estaríamos vivendo o Ministério da Verdade do Geoge Orwell, em que selecionaríamos o que deveria ser guardado e divulgado. Mas os juízes ao soltarem este enunciado, jamais pensaram que o direito ao esquecimento tem de ser sopesado a necessidade de se construir, manter e estruturar a História digital da humanidade.

    Em nosso contexto atual, o esquecimento e a memória estão interligados com o trabalho de associação, mais comumente chamado indexação, é feito por mecanismos de buscas, sendo que o principal deles é o Google, que domina mais de 90% das buscas no mundo. Por conta da acuidade do mecanismo do Google, é grande a chance da busca retornar com informações das mais variadas sobre uma determinada pessoa, situação, coisa, história, enfim, uma complexidade selecionada por esta ferramenta.

    A indexação, por conta da forma como navegamos, torna-se praticamente o grande meio de se obter informações sem ter que decorar endereços eletrônicos, e-mails, lugares, enfim, a indexação do Google facilitou a forma como pesquisamos, selecionamos e analisamos, mas não quer dizer que melhorou a pesquisa. A seleção do Google sobre os conteúdos determina quais sites o usuário vai ver primeiro na busca. Quem determina a relevância é o mecanismo de busca e não mais o buscador. Outro dado importante: mais de 90% dos usuários fica somente nas 3 primeiras páginas da busca.

    E aí, neste ponto, que entra o caso concreto em análise. O Agravante, sabedor desta situação, ficou diante do dilema apresentado acima. Ele foi vítima de uma reportagem, dita sensacionalista pelo relatório do Desembargador, que estava lhe prejudicando. Diante disto, o Agravante teve uma postura sui generis: queria que o Google selecionasse a informação que indexaria juntamente com o seu nome ou que retirasse o seu nome da indexação. Dessa forma, o Agravante não teria o seu nome relacionado com matérias e histórias sensacionalistas, que não sabemos ser verdadeiras ou não. No julgamento do Agravo não entra no mérito dos conteúdos serem verdadeiros. Verdadeiros ou não os fatos, o Agravo negou o pedido liminar do Agravante para que o Google selecionasse ou retirasse a indexação do seu nome nas buscas.

    Espero que num próximo acórdão de Apelação, o E. Tribunal possa adentrar mais na questão dos conteúdos serem verdadeiros ou não. O art. 43, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor determina que o consumidor, “sempre que encontrar inexatidão nos seus dados e cadastros, poderá exigir sua imediata correção, devendo o arquivista, no prazo de cinco dias úteis, comunicar a alteração aos eventuais destinatários das informações incorretas”. Por quê é importante a informação ser verdadeira? Se for verdadeira, mesmo que sensacionalista, não pode ser acolhido o pedido do Agravante para a desindexação, pois, com base no art. 43, § 3º, do CDC, esta informação é exata, não podendo ser retirada do banco de dados ou do sistema indexador. Agora, se inexatas ou não verdadeiras, pode-se requerer a desindexação dos sites estas informações para não se perpetuar uma informação falsa ou inexata.