Restrição a conteúdos e censura prévia

Data do Julgamento:
25/11/2015

Data da Publicação:
15/01/2016

Tribunal ou Vara: Tribunal de Justiça do Distrito Federal - TJDFT

Tipo de recurso/Ação: Agravo de Instrumento

Número do Processo (Original/CNJ): 0022263-35.2015.8.07.0000

Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Des. James Eduardo Oliveira

Câmara/Turma: 4ª Turma Cível

Artigos do MCI mencionados:

Artigo 2º; artigo 3º, I; artigo 4º, II e artigo 19, § 1º.

Ementa:

"DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. DIVULGAÇÃO DE CONTEÚDO NA INTERNET. LEI 12.965/2014. DIREITOS FUNDAMENTAIS. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. RESTRIÇÃO DE ACESSO. ILICITUDE NÃO DEMONSTRADA. CENSURA PRÉVIA À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E CERCEIO AO DIREITO À INFORMAÇÃO. FATOS SUPOSTAMENTE CRIMINOSOS. INTERESSE SOCIAL QUANTO À APURAÇÃO. AUSÊNCIA DE PROVA INEQUÍVOCA.
I. A liberdade de informação e os direitos da personalidade coabitam o texto constitucional sem qualquer relação de preeminência ou subordinação. São valores e princípios constitucionais que não se excluem nem se sobrepujam no plano normativo, de maneira que, em caso de colisão ou atrito no caso concreto, devem ser ponderados para que se estabeleça aquele que deve prevalecer ocasionalmente.
II. À luz das particularidades das situações específicas e com as ferramentas hermenêuticas do princípio da proporcionalidade, incumbe ao juiz solucionar os conflitos de interesses com extrema cautela e sob a lente do conjunto de direitos fundamentais catalogados na Lei Maior, de modo a extrair o direito fundamental que, em dado litígio, deve episodicamente subjugar o outro que com ele rivaliza.
III. No campo específico da internet, a Lei 12.965/2014 prioriza as liberdades de expressão, de comunicação e de manifestação de pensamento, no pressuposto de que atendem ao bem comum e ao interesse público, consoante se depreende dos seus artigos 2º, caput, 3º, inciso I, e 4º, inciso II.
IV. Se o exercício da liberdade de expressão ou de manifestação do pensamento exorbita as raias da legalidade, o artigo 19, caput e § 1º, da Lei 12.965/2014, permite que o conteúdo respectivo seja tornado indisponível pelo provedor de aplicações de internet, isto é, seja suprimido do ambiente virtual.
V. Não parece lícito nem juridicamente razoável admitir a censura prévia a todos os conteúdos que versem sobre determinado fato ou assunto, de maneira a asfixiar os bens jurídicos mais preciosos tutelados pela Lei 12.695/2014: as liberdades de expressão e de manifestação do pensamento e o direito à informação.
VI. No vasto domínio da internet, direitos individuais transitam ao lado de direitos difusos e coletivos. Se, por um lado, é juridicamente viável eliminar ou indisponibilizar conteúdos que agridem direitos individuais, de outro não se revela lícito impedir, de forma ampla e indiscriminada, que os usuários se manifestem sobre fatos de interesse público ou privado e, mais do que isso, privar os usuários do acesso às informações do seu interesse.
VII. Sem que seja possível verificar, de plano, a ilicitude de conteúdos de áudio e de vídeo relativos a fatos graves ocorridos nas dependências de estabelecimento educacional, não se pode exigir de provedores a sua remoção da internet, haja vista o interesse social que permeia o seu conteúdo e a sua divulgação.
VIII. Deve ser reformada a decisão judicial que determina o bloqueio genérico de acesso a conteúdos que simplesmente façam menção aos fatos que determinada sociedade empresária almeja simplesmente banir da internet, máxime à falta de prova inequívoca a respeito da natureza unicamente difamatória dos conteúdos postados ou de sua prévia edição.
IX. Recurso conhecido e provido."

  • Claudio  de Lucena Neto
    Claudio de Lucena Neto em 29/03/2016

    A discussão deste caso acentua bastante bem um problema que o uso inadequado da expressão direito ao esquecimento introduziu no diálogo mundial entre direito e tecnologia. A demandada é uma empresa que opera um mecanismo de busca, e o pedido formulado é para que seja impedido o acesso exatamente a determinados conteúdos relacionados por estas buscas. É um pedido, portanto, de desindexação. A decisão no caso Google Spain v AEPD e Mario Costeja González, do Tribunal de Justiça da União Europeia não fez exatamente surgir a discussão sobre esta que agora é uma tendência mundial, mas certamente viralizou essa construção, expandindo e disparando processos de disciplina jurídica de situações semelhantes por diversas partes do mundo.

    É ainda perceptível a dificuldade do discurso jurídico em perceber e incorporar as distinções sutis mas importantes entre as ações de bloquear, excluir ou apenas indisponibilizar na prática o acesso a determinado conteúdo em ambientes digitais, através de uma providência indireta de desindexação. Estas distinções de fato são importantes porque muitas vezes envolvem questões jurídicas igualmente distintas, e que podem portanto levar a resultados legais também diferentes.

    Buscando ser mais concreto, o termo remover não existe no Marco Civil, o termo excluir não é usado em relação a conteúdo, assim como o termo bloquear, que é usado apenas uma única vez como expressão da garantia de neutralidade da rede, e portanto também não se refere a conteúdo. Assim, remoção de conteúdo estritamente falando não faz parte do ambiente legal do Marco Civil.

    Resta a discussão sobre indisponibilidade. Essa sim é referida várias vezes e é claramente objeto de disciplina legal em relação a conteúdo, tanto próprio como de terceiros. É esse o objeto da decisão que analisamos aqui, e é em termos de (in)disponibilização que toda restrição de conteúdo deve ser tratada através do Marco Civil.

    Porque parece relevante essa distinção? A providência de exclusão deve essencialmente remover o conteúdo, o bloqueio significa que ninguém poderá acessá-lo e a indisponibilização através de motores de busca, como é o caso que se discute aqui, apenas restringe o acesso simplificado, indiscriminado, amplo e universal que era feito através de qualquer mecanismo de busca como o Google.

    É verdade que como esse costuma ser o principal caminho de acesso àquela informação, na prática esse acesso estará de fato bastante restrito. Ainda assim quem tiver o endereço direto de uma página desindexada por decisão judicial pode acessá-la diretamente, sem obstáculo técnico. A desindexação nestes casos é a medida de restrição mais branda disponível, que apenas reduz o potencial de exposição do conteúdo tido como ofensivo, e nesse sentido referir-se a um direito ou uma imposição de esquecimento, como tem sido o caso, não é somente inadequado – é errado mesmo.

    Desindexar, a rigor, é uma mera despotencialização de acesso.

    É importante que seja assim?

    Parece-me que muito.

    É necessário registrar que neste momento nem as liberdades nem os direitos de personalidade têm mais estritamente as mesmas características que tinham antes da revolução digital. Talvez não tenham sequer os mesmos limites e portanto os critérios para a conciliação e as circunstâncias em que uns prevaleciam sobre os outros também podem não ser mais as mesmas.

    Em terreno novo como estamos nesse caso, e tendo em conta a busca por respostas apropriadas para os problemas que começamos a enfrentar, desindexar parece ser sério candidato a ser um destes novos pontos de equilíbrio. É útil, é razoável, é tecnicamente viável (com algum custo, admita-se), e concilia preocupações legítimas de quem opera buscas na internet, como a de que “privar o acesso dos usuários a determinado conteúdo da internet constitui prejuízo irreversível aos direitos de informação e liberdade de expressão”, com tentativas de garantir a preservação do que se vem chamando de autodeterminação informativa, uma construção que emerge da decisão do Judiciário alemão sobre o censo populacional no caso Volkszählungsurteil, em que se reconhece a necessidade de assegurar à pessoa, seja natural seja jurídica como é o caso da decisão comentada, o direito de exercer algum controle sobre a superexposição de uma informação controversa e potencialmente danosa a seu respeito.

    Trata-se de controle parcial e limitado, em função de uma exposição cujo novo potencial digital pode-se converter em danoso precisamente por causa das alternativas que a convergência e a conectividade introduziram, e desde que este juízo seja sempre passível de controle judicial, o equilíbrio que a providência de desindexação permite a princípio parece adequado para conciliar interesses jurídicos conflitantes nesta era de convergência e conexão.

    É relevante que a decisão explicite, por fim, apesar das imprecisões apontadas, que a tendência felizmente não vem sendo a de comprometer o que parecem ser os nortes gerais de boas práticas na busca por estes novos pontos de equilíbrio entre liberdades e direitos de personalidade, e que no caso deste conflito específico, tão comum e tão repetido no Brasil, se está procurando preservar a noção ampla, principiológica de que a censura prévia a conteúdo genérico não deve ser uma solução jurídica admissível.

    A automação de medidas de indisponibilização até já vem sendo adotada inclusive como prática jurídica corrente em alguns micro-sistemas, como é o caso do Content ID do YouTube, que automatiza o tratamento de violações a Direitos de Autor em sua plataforma através de algoritmos de monitoramento e identificação de contexto, ou como foi o caso da restrição também automatizada de acesso ao site Carbon Games em Portugal, onde inclusive reconheceu-se um erro na medida.

    Assim, ao contrário do que a decisão observada parece sugerir, é até possível tentar implementar uma restrição técnica, computacional ampla procurando antecipar violações em ambientes digitais. Esta impossibilidade nem é mais fática. O problema é que estes algoritmos ainda estão muito distantes do grau de transparência e de controle externo que uma democracia exige em debates públicos desta natureza.

    A censura prévia ampla por contexto, mais especificamente, já seria plausível em alguma medida do ponto de vista técnico e o grau de sofisticação destas soluções é cada vez maior. Como há uma tendência a que isto seja proposto em algum momento de um futuro próximo, é absolutamente saudável seguir reafirmando e garantindo que do ponto de vista jurídico, ético e de garantias fundamentais, nenhuma alternativa de automação deve relativizar os valores que constitucionalmente elegemos como mais caros.