Liberdade de expressão e direito ao esquecimento

Data do Julgamento:
15/12/2015

Data da Publicação:
18/12/2015

Tribunal ou Vara: Tribunal de Justiça de São Paulo - TJSP

Tipo de recurso/Ação: Recurso Inominado

Número do Processo (Original/CNJ): 0001227-03.2015.8.26.0001

Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Juiz Paulo de Abreu Lorenzino

Câmara/Turma: 1ª Turma Cível do Colégio Recursal Santana - São Paulo - SP

Ementa:

"RECURSO INOMINADO - Ação cominatória para excluir da internet matéria jornalística veiculada há mais de quinze anos - Veracidade das informações - Direito de liberdade de expressão versus o Direito ao esquecimento - Reportagem que não se refere a fatos genuinamente históricos, tampouco desperta interesse público atual - Comprovação nos Autos de que o autor vem sofrendo prejuízos causados pela matéria ainda exposta nos dias atuais, impedindo a sua ressocialização plena - Direito ao esquecimento que deve prevalecer, eis que no caso em tela está diretamente ligado ao princípio basilar da dignidade da pessoa humana - Sentença mantida - Recurso improvido."

  • Marcel Leonardi
    Marcel Leonardi em 23/02/2016

    Chama especial atenção que esta decisão judicial tenha utilizado, como parte de sua fundamentação, a existência do Projeto de Lei 2712/2015, que trata do alegado “direito ao esquecimento”, cujo texto se apresenta manifestamente contrário à Lei Federal 12.965/2014 (Marco Civil da Internet). Isso porque, tal como redigido, o PL 2712/2015 pretende impor a todo e qualquer web site, blog, mecanismo de busca ou qualquer outra plataforma de publicação online a obrigatoriedade de remoção de conteúdo, sem ordem judicial, bastando ao interessado na remoção alegar que quer fazer uso do suposto "direito ao esquecimento".

    Confira-se:
     

    Art. 2º Acrescente-se o inciso XIV ao art. 7º da Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, com a seguinte redação:

    “Art. 7º (…)

    XIV – remoção, por solicitação do interessado, de referências a registros sobre sua pessoa em sítios de busca, redes sociais ou outras fontes de informação na internet, desde que não haja interesse público atual na divulgação da informação e que a informação não se refira a fatos genuinamente históricos.”


    Essa proposta contraria frontalmente o artigo 19 da Lei Federal 12.965/14, o qual expressamente dispõe que “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.

    Como se vê, o Marco Civil da Internet consagrou a necessidade de ordem judicial para forçar a remoção de conteúdo de plataformas e serviços online, com a intenção de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura.

    É exigida ordem judicial, portanto, nos casos de remoção forçada de conteúdo, que não se confunde com eventual remoção voluntária de conteúdo – neste último caso, cada serviço online continua livre para implementar as políticas que entender pertinentes para remoção voluntária de conteúdo. Não se deve pensar, portanto, que um provedor de aplicações está de mãos atadas, aguardando por uma ordem judicial: esse provedor pode perfeitamente remover o conteúdo de acordo com seus termos de uso, suas políticas e outras práticas.

    Ressalte-se que esse modelo não é novo, pois a remoção judicial de conteúdo online já fazia parte do sistema jurídico brasileiro: a lei 12.034/2009, que tratou da reforma eleitoral, estabeleceu em seu artigo 57-F que serviços online somente serão responsabilizados pela divulgação de propaganda eleitoral irregular caso sejam notificados da existência de decisão da Justiça Eleitoral e não tomem providências para cessar essa divulgação, dentro do prazo assinalado pela decisão judicial.

    Entretanto, o sistema de remoção de conteúdo sem ordem judicial previsto no PL 2712/2015, apesar de ter em mente o direito legítimo de uma vítima de ato ilícito remover rapidamente determinado conteúdo ilegal da rede, tem sérias implicações para a liberdade de manifestação do pensamento online.

    O conteúdo gerado por usuários é, hoje, uma das principais formas de expressão, fomentando a participação política, o pensamento crítico e o estabelecimento de novas comunidades para interação entre pessoas. A remoção de informações online sem ordem judicial, mediante simples requerimento do interessado faz com que todo o potencial desses espaços e dessas ferramentas seja desperdiçado.

    Não é possível afastar a necessidade de análise judicial e de ordem específica para forçar a retirada de conteúdo online, já que decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do material — em todas as suas possíveis formas — é algo necessariamente subjetivo, além de ser prerrogativa exclusiva do Judiciário, e não de usuários ou de provedores. Tanto a Lei Federal 12.965/14 (Marco Civil da Internet) quanto a jurisprudência brasileira consagram o entendimento de que a remoção forçada de conteúdo é um papel reservado ao Estado, que não pode ser usurpado.

    Muitas informações controversas são mantidas online, hoje, porque aqueles interessados na remoção desse conteúdo sabem que o Judiciário não concederia ordens nesse sentido. Adotado um sistema de remoção sem ordem judicial, há um grande risco de que pessoas e empresas passariam a exigir a exclusão de informações claramente lícitas, apenas porque a divulgação desse material não lhes agrada.

    Além disso, a proposta contida nesse projeto de lei não prevê quaisquer penalidades para solicitar a remoção de conteúdo de má-fé, o que por si só estimula pedidos de remoção infundados.

    A legislação atual, ao exigir ordem judicial para a remoção forçada do conteúdo, privilegia a liberdade de expressão ao evitar que muitas manifestações relevantes, porém desagradáveis a estes ou aqueles interesses, sejam removidas sem razão jurídica.

    Quem precisar remover urgentemente conteúdo ilegal da Internet sempre terá o Judiciário à disposição – podendo, inclusive, utilizar o Juizado Especial e obter antecipação de tutela por via liminar, como expressamente previsto nos parágrafos 3º e 4º do artigo 19 do Marco Civil da Internet.

    Um sistema que permita a remoção imediata de conteúdo sem revisão judicial, por mais bem intencionado que seja, servirá como ferramenta de censura e intimidação, aniquilando as conquistas obtidas pela sociedade com o Marco Civil da Internet.

    Por fim, a Organização das Nações Unidas, em relatório divulgado em 24 de maio de 2011, expressamente destaca a necessidade de cuidadosa ponderação dos direitos fundamentais em jogo e recomenda o seguinte:
     

    “(…) intermediários, como entidades privadas, não são os melhores posicionados para determinar que tipo de conteúdo é ilegal, pois requer um balanceamento cuidadoso dos interesses em jogo e consideração das defesas. O Relatório Especial acredita que medidas de censura nunca devem ser delegadas a uma entidade privada, e que ninguém deve ser responsabilizado por conteúdo na Internet que não é de sua autoria. Na verdade, nenhum Estado deve forçar ou usar intermediários para realizar censura em seu nome (…)”.