Acesso ao WhatsApp em celular apreendido

Data do Julgamento:
19/04/2016

Data da Publicação:
06/05/2016

Tribunal ou Vara: Superior Tribunal de Justiça - STJ

Tipo de recurso/Ação: Recurso em Habeas Corpus

Número do Processo (Original/CNJ): 0007083-93.2014.8.22.0000

Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Min. Nefi Cordeiro

Câmara/Turma: 6ª Turma

Artigos do MCI mencionados:

Artigo 7º, I, II e III.

Ementa:

"PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. NULIDADE DA PROVA. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA A PERÍCIA NO CELULAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.
1. Ilícita é a devassa de dados, bem como das conversas de whatsapp, obtidas diretamente pela polícia em celular apreendido no flagrante, sem prévia autorização judicial.
2. Recurso ordinário em habeas corpus provido, para declarar a nulidade das provas obtidas no celular do paciente sem autorização judicial, cujo produto deve ser desentranhado dos autos."

  • Renato  Leite Monteiro
    Renato Leite Monteiro em 30/06/2016

    Em junho de 2014, a Suprema Corte Americana, em Riley v. California, proferiu uma decisão paradigmática para a proteção ao direito à privacidade. A Corte determinou que o conteúdo armazenado em um celular, simples ou smartphone, somente poderia ser acessado e/ou coletado por autoridades por meio de mandado judicial específico. Antes de tal decisão, baseados em uma teoria datada da década de 1960, as autoridades policiais entendiam que podiam examinar o histórico de mensagens, as buscas feitas na internet, ler mensagens de texto, ou analisar qualquer conteúdo armazenado no celular apreendido em uma situação de flagrante delito.

    Essa teoria, conhecida como Doutrina SITA, cunhada com o intuito de proteger a integridade física dos policiais, permite a apreensão de qualquer objeto que possa, em tese, colocar em risco a vida ou a incolumidade destes. Recentemente, passou a ser utilizada para justificar a apreensão de aparelhos celulares e qualquer outro equipamento eletrônico que estivesse de posse de um suspeito encontrado em situação de flagrante delito. Após estes serem apreendidos, podiam ter o seu conteúdo devassado, e utilizado como prova, mesmo na ausência de decisão judicial que validasse a apreensão e o acesso ao conteúdo.

    Diante do avanço da tecnologia, a capacidade de armazenamento de equipamentos eletrônicos e, principalmente, a mudança de comportamento de cidadãos para com seus devices, referida postura passou a ser questionada pela doutrina e por tribunais americanos. Uma vez que aparelhos como smartphones passaram a ser parte praticamente indissociável do dia-a-dia de um cidadão, coletando dados e informações que possibilitam um mapeamento altamente detalhado de suas vidas, passou-se a perguntar se o conteúdo destes não estariam protegidos pelos direitos previstos na 4ª emenda da Constituição Americana, de onde deriva-se o Direito à Privacidade, mesmo em situações de flagrante delito.

    Como relatado pelo Prof. Jeffrey Fisher, da Universidade de Stanford, tal permissiva poderia “abrir por completo a vida de cada americano para um departamento de polícia, não apenas na cena do crime mas também nas delegacias, que poderiam copiar o conteúdo e mantê-lo para sempre” . Portanto, muitos acreditavam que se a polícia pudesse ter acesso ao conteúdo do seu celular sem um ordem judicial, ela poderia ter acesso a toda a sua vida.

    Em face dessa conjuntura, e das diferentes decisões prolatadas por diversos tribunais, a Suprema Corte Americana decidiu pacificar o entendimento de que para se ter acesso ao conteúdo de um celular é necessária uma ordem judicial prévia e específica autorizando não só a apreensão do equipamento, mas expressamente a análise dos dados armazenados, visando proteger direitos individuais e proporcionar uma maior segurança jurídica.

    A corte explicou que permitir que forças policiais acessem o conteúdo de celulares sem ordem judicial seria um interpretação constitucional desproporcional. Que as regras da era pré-digital não deveriam ser aplicadas irrestritamente em buscas de aparelhos celulares, pois estes, por vezes, são capazes de armazenar uma quantidade de informações, muitas altamente pessoais, exponencialmente superiores ao o que alguém poderia carregar consigo no bolso em meios analógicos. Sumarizando, a corte afirmou que (traduzimos):
     

    “Celulares não são apenas outra conveniência tecnológica. Com tudo que eles contém e que podem revelar, eles detém, para muitos americanos, a privacidade das suas vidas. O fato que tecnologia agora permite o indivíduo carregar tanto informação em suas mãos não faz desta informação merecedora de menor proteção do que aquela pela qual os Fundadores lutaram tanto” .
     

    É incrível a similaridade de tais argumentos com o recém julgado do Superior Tribunal de Justiça que analisou situação análoga. No caso em apreço, suspeito de prática de tráfico de entorpecentes teve o seu celular apreendido quando foi preso em flagrante quando entregava a mercadoria ilícita. Após a apreensão, o conteúdo das suas conversas via Whatsapp foram analisados, transcritos, e utilizados como prova nos autos do procedimento criminal. O Tribunal nacional, chegando a mesma conclusão da corte norte-americana, pela ilegalidade da prova, afirmou:
     

    “Atualmente, o celular deixou de ser apenas um instrumento de conversação pela voz à longa distância, permitindo, diante do avanço tecnológico, o acesso de múltiplas funções, incluindo, no caso, a verificação da correspondência eletrônica, de mensagens e de outros aplicativos que possibilitam a comunicação por meio de troca de dados de forma similar à telefonia convencional. Deste modo, ilícita é tanto a devassa de dados, como das conversas de whatsapp obtidos de celular apreendido, porquanto realizada sem ordem judicial”.
     

    Para tanto, os Ministros se basearam nos direitos fundamentais à privacidade e a inviolabilidade das comunicações privadas, direito este regulado pela Lei 9296/96, que trata da interceptação telefônica e telemática. Esta determina que somente após ordem judicial prévia, no bojo de uma investigação criminal ou processo penal, podem as comunicações ser devassadas. Todavia, durante muito tempo houve o entendimento que tal proteção prevista na norma federal somente se aplicaria às comunicações em trânsito, e não às estáticas, armazenadas. Tribunais superiores tiveram a oportunidade de se manifestado no sentido que de que o conteúdo estático estaria protegidas pelo direito à privacidade, mas para ceifar qualquer dúvida o Marco Civil da Internet, em seu Art. 7º, III, fez a diferenciação entre o sigilo do fluxo de comunicações e o das informações armazenadas:

    Art. 7º. O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
    I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
    II - inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei;
    III - inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial;


    Com base nesse entendimento, a Corte Superior, dando prevalência a preceitos fundamentais do Estado Democrático de Direito, decidiu que o conteúdo de celulares somente podem ser acessados mediante ordem judicial prévia. Todavia, deixou em aberto alguns pontos, tais quais:

    • O ordem judicial em comento pode ser uma genérica de busca e apreensão que determina apreender objetos em uma residência em um endereço específico, ou deve esta autorizar especificamente e expressamente o acesso ao conteúdo do equipamento?
    • Por se tratar de uma permissiva para acesso a conteúdo estático armazenado, esta se limita às informações que estão propriamente guardadas no equipamento ou também inclui as que se encontram em serviços de nuvem que podem eventualmente ser acessados por meio deste?
    • Caso haja a apreensão do equipamento, para posterior acesso ao conteúdo quando houver ordem judicial para tanto, como evitar que este seja apagado remotamente pelo seu proprietário?

    Um ponto final que será alvo de muita discussão futura é se seria possível a instalação remota, após ordem judicial para tanto, de artefato malicioso no smartphone de alguém visando monitorar o seu comportamento, sua comunicação e sua localização. Esta empreitada já tem sido implementada em investigações criminais nacionais, mas a sua legalidade ainda não foi desafiada nos tribunais superiores, sendo necessário analisar a sua proporcionalidade diante de algumas das balizas utilizadas no presente caso.

    Portanto, a decisão do STJ em comento é, da mesma forma que foi a da Suprema Corte Americana, um paradigma para a proteção à privacidade e inviolabilidade das comunicações, estabelecendo um sistema de balanceamento entre o interesse público na persecução criminal com os direitos individuais dos cidadãos. Todavia, deixa ainda diversas lacunas que deverão ser preenchidas em análises futuras.

  • Flávia Lefèvre
    Flávia Lefèvre em 31/05/2016

    Relevante a decisão do STJ proferida em Habeas Corpus, por meio do qual se busca o reconhecimento da nulidade de prova retirada de aparelho celular apreendido sem prévia ordem judicial. De acordo com o STJ, a prévia ordem judicial é imprescindível para o acesso e utilização de informações colhidas em comunicação realizada pelo aplicativo Whatsapp, a fim de que possam ser utilizadas como prova em processos judiciais.

    O STJ entendeu no sentido de que as conversas mantidas por meio do Whatsapp são uma forma de comunicação escrita, imediata entre interlocutores, em razão do que se equipara a qualquer outra forma de comunicação por carta ou e-mail, para as quais é necessária ordem judicial a fim de que as autoridades policial ou do Ministério Público estejam autorizadas a ter acesso aos seus conteúdos.

    Ou seja, o fato de um aparelho de telefone celular ter sido apreendido pela autoridade policial, por si só, não implica na possibilidade de invasão da privacidade e da correspondência armazenada, tendo em vista as garantias constitucionais mencionadas no acórdão, expressas nos incs. X e XII do art. 5º, no inc. V, do art. 3º, da Lei Geral das Telecomunicações e, mais recentemente, os direitos do usuário de internet estabelecidos nos incs. I, II e III, do art. 7º, que asseguram a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, do sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, assim como daquelas que ficam armazenadas, sendo imprescindível prévia ordem judicial para que se possa acessá-las.

    Trata-se de entendimento voltado para a preservação de pilares fundamentais do estado democrático de direito, evitando que a parte que atuará no processo penal tenha posição privilegiada, usando seu poder de polícia para produzir provas de forma unilateral.

    A necessidade de ordem judicial para o afastamento das garantias à privacidade, intimidade e comunicações privadas é uma forma de prestigiar o equilíbrio processual, o direito de ampla defesa e a dúvida em favor do réu em ações penais, de modo que apenas o juiz, respaldado pela premissa da imparcialidade, possa decidir pela legalidade ou não da violação de comunicações privadas.

    Assim como nos EUA e alguns países da Europa, como é o caso da Espanha, a interceptação telefônica ou de correspondência constituem conduta ilegal, o que revela o quanto sistemas jurídicos como o nosso se empenham para proteger a intimidade e privacidade; e o Marco Civil da Internet seguiu o mesmo caminho.

    É certo que o celular foi apreendido em ação policial que prendeu em flagrante traficante de droga, o que poderia justificar em certa medida a decisão do Tribunal Estadual que admitiu a coleta das conversas no Whatsapp como meio de prova, com base, inclusive, em precedentes do Supremo Tribunal Federal no sentido de que as salvaguardas constitucionais não podem servir para respaldar práticas ilícitas.

    Entretanto, a primeira parte do inc. XII, do art. 5º, que inclui a inviolabilidade das comunicações telegráficas e de dados é norma de eficácia plena, na medida em que apenas para as comunicações telefônicas permite o acesso, desde que precedida “por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.

    Portanto, andou bem o legislador ao definir no Marco Civil da Internet a exigência de ordem judicial para acesso de dados dos usuários dos serviços de conexão e aplicações. Esta decisão é um importante precedente para servir de guia para interpretação dos novos direitos estabelecidos pelo o Marco Civil da Internet.