Suspensão do bloqueio do WhatsApp

Data do Julgamento:
03/05/2016

Data da Publicação:
03/05/2016

Tribunal ou Vara: Tribunal de Justiça de Sergipe - TJSE

Tipo de recurso/Ação: Mandado de Segurança - Pedido de reconsideração

Número do Processo (Original/CNJ): 0003701-40.2016.8.25.0000

Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Des. Ricardo Múcio Santana de Abreu Lima

Câmara/Turma: Monocrática

Artigos do MCI mencionados:

Artigo 7º; artigo 9º, § 3º; artigo 10 e parágrafos; artigo 11 e parágrafos, especialmente o § 4º; artigo 12 e incisos, especialmente o III.

Ementa:

"MANDADO DE SEGURANÇA – Whatsapp – Bloqueio – Manutenção – Reconsideração – Deferimento – Liminar deferida."

  • - Omar Kaminski - [ Gestor do OMCI ]
    - Omar Kaminski - [ Gestor do OMCI ] em 04/05/2016

    Em prol do interesse público, em que a transparência é a regra e o sigilo a exceção (art. 93, IX da Constituição Federal), e tendo em vista a comoção pública que o ato judicial ocasionou, tomamos a liberdade de divulgar a íntegra da decisão do TJSE no pedido de reconsideração de desbloqueio do aplicativo WhatsApp em sede de Mandado de Segurança, principalmente pelo fato de ter sido posteriormente acostada em processo de âmbito público, sem segredo de justiça e cuja confidencialidade acabou (inadvertidamente?) ineficaz.

    Referimo-nos ao item 10 do diretório de peças eletrônicas da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 403, apresentada pelo Partido Popular Socialista (PPS) e acessível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4975500

    Por cautela, substituímos (ocultamos) a menção ao nome de um dos réus por XXXXXX. No mais, entendemos não haver na decisão nenhum outra informação, fato ou dado pessoal dependente de sigilo ou cuja divulgação possa prejudicar o bom andamento do caso.

    Dito isto, fazemos coro à visão de vários colegas que entenderam ser o "bloqueio" abusivo, desproporcional e inadequado, e que se trata de interpretação "elástica" do Marco Civil da Internet por parte do magistrado de primeiro grau.

    Nas palavras do desembargador do TJSE Ricardo Múcio, que suspendeu a ordem:
     

    É certo que a Justiça, ao decretar a interrupção dos serviços de whatsapp, o está fazendo como punição para garantir o bem comum. Este mesmo bem comum deve ser resguardado com o desembaraço no uso da internet e das comunicações.


    Note-se, inclusive, que "crackers" teriam atacado o site do TJSE em represália à suspensão do serviço, colocando-o "fora do ar" e impossibilitando os jurisdicionados de se utilizarem do processo eletrônico.

    O "bloqueio", mais do que punir uma empresa desobediente, acabou prejudicando milhões de pessoas que fazem uso inclusive profissional da ferramenta, abrangendo até varas judiciais e Tribunais.

    Vide, por exemplo: Justiça concede medida protetiva a mulher ameaçada e comunica decisão por aplicativo (28/03/16); Whatsapp vai agilizar audiências em Campina Grande (20/01/2016); Juiz do TJGO usa WhatsApp para aprimorar funcionamento de Juizado Especial (07/01/2016); Vara do Trabalho de Lucas do Rio Verde faz citação por WhatsApp (22/10/2015); Juiz de Tucuruí usa WhatsApp para notificar partes no Suriname (08/07/2015); Justiça do Trabalho da 15ª costura primeiro acordo pelo WhatsApp (22/05/2015), entre outras.

    É inconteste a dependência tecnológica nos dias atuais, e há inclusive quem defenda que não tardará para que o direito de acesso à Internet seja alçado ao nível constitucional. Por isto insistimos: os usuários de boa fé não podem nem devem ser castigados ou punidos em situações análogas.

    Para que situações como esta não se repitam, tanto o judiciário como o legislativo necessitam de um melhor entendimento, de uma melhor compreensão das chamadas Tecnologias da Informação e Comunicação, de seu alcance e também de suas fragilidades e falhas.

    E que se possa resolver as desobediências das empresas de maneira menos prejudicial à coletividade e ao direito de acesso à informação.

    In dubio pro libertate.

  • Fabiano Menke
    Fabiano Menke em 18/09/2016

    * em co-autoria com Pedro Dittrich

    No que diz respeito à tormentosa questão do bloqueio de aplicativos, como recentemente tem ocorrido com o Whatsapp, é importante primeiramente esclarecer que há previsão legal para que estes "provedores de aplicação", tal qual a conceituação do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965, de 23.04.2014, art. 4º, VII, combinado com art. 15, caput, e outros), recebam e cumpram ordens judiciais para disponibilizar o conteúdo das comunicações privadas. Isso está previsto no § 2º do art. 10 do Marco Civil, que determina: "§ 2º O conteúdo das comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, respeitado o disposto nos incisos II e III do art. 7º".

    Pode-se considerar como texto legal a ser aplicado, a preencher o contido na parte final do dispositivo transcrito, a Lei Federal nº 9.296, de 24.07.1996, que regulamentou o inciso II, do art. 5º da Constituição Federal. Esta Lei abrange basicamente, e conforme a dicção de seu art. 1º, a interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal. O parágrafo único do art. 1º desta Lei determina a sua aplicação à interceptação do fluxo de comunicação em sistemas de informática e telemática, e daí a sua aplicabilidade às mensagens trocadas por meio de aplicativos de internet de dispositivos móveis como telefones celulares e outros. Quanto à possibilidade de aplicação desta Lei à comunicação realizada por meio de telefones celulares, não pela forma clássica, mas por meio da utilização de sistemas de informática, a doutrina tem sido enfática pela viabilidade (ver, por todos, GOMES, Luiz Flávio; MACIEL, Silvio. Interceptação telefônica: comentários à Lei 9.296, de 24.07.1996. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 85-88).

    Da mesma forma, não convencem considerações no sentido de que a Lei de Interceptações seria aplicável apenas às concessionárias de telefonia, por conta do disposto em seu art. 7º ("Para os procedimentos de interceptação de que trata esta Lei, a autoridade policial poderá requisitar serviços e técnicos especializados às concessionárias de serviço público"). É que a Lei de Interceptações focou muito mais na regulação do ato de interceptação em si, abstratamente considerado, do que no ator que irá desempenhá-lo, sendo o dispositivo destacado o único a fazer menção às concessionárias de serviço público, não contendo este e não havendo outro que contemple o conteúdo restritivo que da lei se tenta extrair.

    Tanto a Lei nº 9.296/1996 (arts. 1º e 3º) quanto o Marco Civil (art. 7º, II e III) partem do pressuposto do requisito da ordem judicial para que seja procedida a interceptação da comunicação. Assim, da mesma forma que as operadoras de telefonia, os provedores de aplicação que disponibilizam serviços de comunicação devem estar adequados à legislação brasileira, não podendo frustrar o cumprimento das regras que preveem a possibilidade de interceptação das comunicações, na hipótese de ordem judicial prévia neste sentido.

    Um dos grandes óbices que tem sido suscitado pelos provedores de aplicação, com a chancela da doutrina, para não cumprirem as determinações judiciais, localiza-se na denominada "impossibilidade técnica". Ocorre que a impossibilidade técnica de que se cuida, qual seja, a criptografia, ou qualquer outra que se venha a cogitar, não integra a natureza do aplicativo, mas sim foi nele implementada pelo próprio provedor de aplicações. Por mais que a finalidade da criptografia na comunicação seja louvável, dado que protege o sigilo das comunicações dos usuários, garantindo, portanto, a sua privacidade, o provedor de aplicações não pode deixar de se submeter ao que determina a legislação em vigor no país. E em assim sendo, o aplicativo que desenvolve, deve estar apto a monitorar o usuário após o recebimento de uma ordem judicial.

    Nesta ordem de ideias, deveriam os provedores de aplicação seguir uma das duas alternativas: 1) ou implementam a criptografia e alertam os usuários de que no caso de ordem judicial de interceptação, esta criptografia será desabilitada sem que o usuário tenha conhecimento durante o período da interceptação; 2) ou, se a inativação for inviável, deixam de implementar a criptografia de maneira a possibilitar o cumprimento de ordem judicial.

    Nada impede que o próprio usuário se utilize de meios de cifrar a sua comunicação que não sejam fornecidos pelo provedor de aplicações, uma vez que a utilização da criptografia não é proibida no país. Isto é exatamente o que ocorre, por exemplo, na telefonia: as operadoras não fornecem criptografia aos usuários, mas nada impede que eles a empreguem. É preciso que se atente ao fato de que a limitação de arquitetura do aplicativo pesa sobre o seu desenvolvedor, e não sobre o usuário, pois é ele que deve estar adequado a dispositivos como os do Marco Civil e da Lei de Interceptações.

    Entendemos que estas perguntas também demandam uma resposta e devem merecer a atenção dos próximos debates. Como detentores do "código", na acepção de Lawrence Lessig (Code and other Laws of Cyberspace), não podem os provedores de aplicação fugirem das determinações das regras previstas na legislação dos mais diversos países, e, no caso concreto do Brasil, não podem deixar de cumprir o previsto nos artigos de lei mencionados (§ 2º do art. 10 do Marco Civil, combinado com os arts. 1º e 3º da Lei nº 9.296/1996). A implementação da criptografia sem a possibilidade de ser desabilitada após a ordem judicial acaba contornando dispositivos legais que estabelecem que sempre após o recebimento de ordem judicial, a comunicação do usuário deva ser monitorada.

    Em outras palavras, o "código", ainda que sem intenção e por elevadas razões, como a proteção do sigilo das comunicações, não pode tornar ineficaz disposições legais que vieram justamente para restringir, em situações excepcionais, a "configuração do código".

    Não há que se falar, portanto, em "opção" do provedor de aplicação, pois a lei não abriu a possibilidade de o provedor de aplicação fazer opções que frustrem o seu cumprimento, a menos que, como referido, o provedor de aplicação desabilite a criptografia após o recebimento da ordem judicial. No que toca à medida extrema de suspender o funcionamento do aplicativo, há que se concordar com os que entendem se tratar de alternativa desproporcional e que acaba por penalizar muito mais os usuários, que ficam sem poder utilizar o aplicativo, e as empresas provedoras de internet, que são obrigadas a mobilizar seus recursos humanos e de infraestrutura sem cobertura dos respectivos custos para dar cumprimento à ordem judicial de bloqueio.

    A iniciativa mais adequada para afastar de vez referida possibilidade de aplicação talvez tenha sido tomada com o ajuizamento da ação de descumprimento de preceito fundamental, perante o Supremo Tribunal Federal, cuja liminar para vedar a suspensão do aplicativo foi deferida e está em vigor.

    Mas um ponto chama a atenção: as negativas de aplicativos como Whatsapp, de se adequarem à legislação brasileira, não são, da mesma forma, desproporcionais, dada a sua reiteração e considerado o fato de que o Brasil é um dos maiores usuários do aplicativo e o que contempla o maior número de grupos de usuários? Além, não deveriam as pessoas físicas e jurídicas responsáveis por esses aplicativos no Brasil sofrer algum tipo de sanção pelo descumprimento da legislação setorial e de eventual ordem judicial?

    Entendemos que estas perguntas também demandam uma resposta e devem merecer a atenção dos próximos debates.

  • Guilherme Damasio Goulart
    Guilherme Damasio Goulart em 05/05/2016

    Em me manifestei, em um comentário de jurisprudência aqui no Observatório do Marco Civil, sobre a questão da impossibilidade técnica do cumprimento de certas ordens judiciais por provedores. O problema geral que atualmente se debate, com os bloqueios do Whatsapp, envolve a (im)possibilidade do fornecimento do conteúdo de conversas, diante da criptografia fim-a-fim implementada pelo aplicativo. Se o aplicativo realmente implementou sua criptografia de forma correta, há, de fato, a impossibilidade técnica de fornecer os dados. Nenhuma ordem judicial pode alterar essa impossibilidade técnica. Talvez, considerando que o aplicativo não armazene os relacionamentos de forma criptografada (quem falou com quem e quem é “amigo” de quem), cogita-se a possibilidade, apenas, do fornecimento desses metadados.

    Ao mesmo tempo, emerge o debate sobre a licitude da criação de aplicativos (ultra)seguros, protegidos por criptografia forte. O problema é muito maior e envolve a possibilidade dos Estados, de forma geral, colocarem limites ao uso da criptografia, o que implica em restrições à segurança da informação e também à liberdade de expressão (ambos direitos fundamentais). Não se perca de vista que a ONU, por meio do seu Human Rights Council, manifestou-se no sentido de que há um direito de se comunicar de forma anônima e com o uso da criptografia (cf. o Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right to freedom of opinion and expression - A /HRC/29/32). O documento ainda afirma que qualquer limitação a esse princípio deve ser absolutamente estrita, observando os princípios da legalidade, necessidade, proporcionalidade e legitimidade.

    No referido comentário anterior, aqui no Observatório, afirmei: "A sempre alegada impossibilidade técnica da realização de uma série de medidas pelos provedores de aplicação também deve ser vista com cuidado. Sob pena de se crer apenas em um argumento de defesa, é necessária a certeza técnica de tal impossibilidade, que só pode ser atingida via perícia técnica. O STJ já decidiu, em caso semelhante, que a impossibilidade técnica de cumprir medida em ambiente tecnológico deve ser comprovada pela empresa. Assim, “o ônus da prova cabe à empresa, seja como depositária de conhecimento especializado sobre a tecnologia que emprega, seja como detentora e beneficiária de segredos industriais aos quais não têm acesso vítimas e Ministério Público” (cf. REsp. 1.117.633/RO). Há outros casos em que defesas genéricas de impossibilidade técnica já foram rechaçadas pelos tribunais. Cita-se o conhecido caso em que o Google recusou-se a realizar interceptação telemática com o simples argumento da impossibilidade técnica pelo fato dos dados estarem no exterior (TRF4, MS 0021816-40.2010.404.0000/RS)."

    Evidentemente que isso não justifica o bloqueio, que parece ser medida desproporcional. O Whatsapp é um aplicativo utilizado por milhões de pessoas no Brasil e no mundo e seu bloqueio, antes mesmo de punir a empresa, prejudica todas as pessoas e instituições que o utilizam de forma claramente lícita. Há vozes, também, afirmando que o Marco Civil, em seu art. 12, não permitiria o bloqueio completo de um serviço, mas, apenas, as atividades elencadas nos arts. 10 e 11 (o recolhimento de logs). Se essa interpretação for correta, o que se poderia fazer seria efetuar o bloqueio apenas da atividade de recolhimento de logs, caso haja a violação da privacidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes envolvidas. Tal interpretação é reforçada pelo fato de que o título da Seção II do Cap. II é “Da Proteção aos Registros, aos Dados Pessoais e às Comunicações Privadas”. Igualmente, é necessário apontar que o § 4º do art. 11 ainda fala na necessidade de regulamentação da apuração de infrações por meio de decreto específico. Assim, é possível discutir também se, sem o decreto, haveria a possibilidade da realização de tais bloqueios.

    Por outro lado, com ou sem Marco Civil, um juiz tem o poder de proibir a perpetuação de uma atividade que seja absolutamente ilícita (seja ela uma atividade informática ou não). O mesmo vale para um serviço que tenha a única e exclusiva finalidade de permitir o cometimento de crimes (certamente, não é o que ocorre com o Whatsapp). A questão é se o Whatsapp contraria a ordem jurídica por oferecer um serviço criptografado que não permita a interceptação do conteúdo dos chats. É ilícito o uso da criptografia para proteger mensagens trocadas na Internet? Se a resposta for positiva, o mero uso de VPNs, sites com HTTPS e afins, passaria a ser ilícito também. A proibição atingiria até mesmo a própria assinatura eletrônica por meio do algoritmo de chaves públicas, uma vez que ela também pode ser usada para criptografar mensagens. Em uma primeira análise, é possível sustentar que o serviço é lícito, embora use expedientes atípicos para se opor às ordens judiciais, como por exemplo, a indisposição do Facebook em comprovar tecnicamente a impossibilidade do fornecimento dos dados (ou mera alegação de que não responde pelo Whatsapp). Alegar a impossibilidade sem provar - e sem o recurso judicial adequado - meramente descumprindo a ordem judicial (que parece ser, de fato, impossível de cumprir), é um "meio de defesa" aparentemente inadequado. Bastaria que a empresa comprovasse tecnicamente a impossibilidade de fornecer os dados.

    Tudo leva a crer que a ordem jurídica brasileira permite a disponibilização de aplicativos que usam criptografia fim-a-fim que impossibilitam, assim, o acesso ao conteúdo das conversas por terceiros. Pensar de forma diferente envolveria a necessidade de se proibir o uso da criptografia. Como a criptografia está ao alcance de todos, qualquer tentativa de proibir seu uso seria ineficaz, pois o agente sempre poderá buscar outro meio de utilizá-la. Em última análise, como a criptografia baseia-se em métodos matemáticos, tentar proibi-la implica em tentar proibir o uso da própria matemática. A referida proibição (ou uma tentativa) já ocorreu na história universal. Trata-se do ato do governador da província de Córdoba, durante a ditadura argentina, em 1976, que proibiu o ensino da "Teoria dos Conjuntos" por considerá-la "abertamente subversiva", já que "evidentemente tiende a masificar y evocar multitudes". Como se viu, a proibição não teve efeito.

  • Claudio  de Lucena Neto
    Claudio de Lucena Neto em 04/05/2016

    O conhecimento da decisão lança mais alguma luz sobre o caso concreto, mas é evidente que diversas circunstâncias ainda seguem pouco conhecidas, e portanto a avaliação específica do que se passou ainda não será talvez para o momento a melhor. De qualquer maneira, parece já ser o suficiente para algumas reflexões preliminares que ajudem no esforço que representa esta iniciativa, que é o de contribuir para a construção de uma interpretação sistemática, aberta e coletiva sobre o Marco Civil da Internet.

    Em primeiro lugar, sendo a determinação de suspensão do serviço fundamentada nos termos do artigo 12, inciso III do MCI, é inevitável concluir que ela está errada. Vejo um exagero na representação ao CNJ, numa tentativa de transformar o incidente em ilícito administrativo, porque reconheço que há de fato uma divergência legítima, uma expectativa de poder geral de cautela, e sobretudo a intenção de buscar efetividade de uma decisão judicial, mas que o fundamento está absolutamente equivocado, isto sem dúvida está. A seção em que o dispositivo está inserido cuida exatamente do inverso, ou seja, da violação do sigilo de dados pessoais. As penalidades do Artigo 12, portanto, em hipótese alguma se aplicam em caso de negativa em fornecer dados. Ao contrário, só poderiam ser aplicadas em caso de fornecimento indevido destes dados. Há uma distorção do sentido da norma e um erro técnico indiscutível.

    Em nenhum dispositivo, pelo menos até a cirurgia que está sendo feita através da CPI de Crimes Cibernéticos, o MCI determina a preservação de conteúdo de comunicações. Se um magistrado ou autoridades de segurança acham que devia determinar, é uma outra questão. Mas a norma é o que está lá, e não o que se acha que deveria estar, e retenção de conteúdo não está. Aliás, é essa uma das principais alterações propostas pela CPI ao MCI. Hoje, não se permite. A referência que se faz é à retenção de registros de conexão ou registros de acesso a aplicações. Em relação a dados pessoais e conteúdo de comunicações, o MCI remete ao art. 7º, em busca de lei específica. É possível que se encontre fundamento para guarda e monitoramento de comunicações na lei que trata de interceptações (se bem que sem ser concessionárias de serviço público as empresas que operam estes serviços não estão a princípio sujeitas a esta disciplina) ou de crime organizado, mas no MCI, definitivamente não.

    Sobre o fundamento da discussão, que agora aparece um pouco mais claro, percebe-se que o que se pretende no juízo de origem não é a entrega de comunicações que já ocorreram, mas que se passe a monitorar a partir de agora. Aqui o dilema é ainda maior, porque não é que o WhatsApp não possa cumprir esta determinação. É que a companhia fez uma opção técnica pela criptografia de ponta a ponta sem armazenamento de mensagens, que de fato potencializa a segurança aos seus usuários legítimos. Ao mesmo tempo, proporciona, sim, um cenário mais favorável a quem pretende um uso para fins ilegais também. A Electronic Frontier Foundation tem um estudo recente que confirma a implementação desta opção, e ao que parece indica também que o código é auditável, e isso deveria ter sido suficiente para determinar se a obrigação de entregar conteúdo pretérito era possível ou não. O problema é que essa não é a questão. O que o magistrado quer é tecnicamente possível, desde que a empresa abra mão do modelo de segurança que escolheu implementar. É preciso, portanto, que essa obrigatoriedade exista em lei. Específica. Poder geral de cautela não serve, porque significa proibir uma escolha da empresa com base na qual ela conquista, convence e contrata com seus usuários, e que só poderia ocorrer com a reversão da política ou a implementação de backdoors, comprometendo segurança de forma irrestrita e sem garantia de controle. No Brasil, e principalmente no MCI, essa obrigatoriedade não existe.

    Não é um problema exclusivamente brasileiro. Diversas jurisdições estão debruçadas e envolvidas neste debate atualmente. O FBI recuou do pedido que foi feito neste sentido no caso do IPhone de San Bernardino, tendo aparentemente encontrado outra forma, muito menos genérica, muito mais individualizada, de continuar a investigação. Nem o novo Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia, em vigor e em vias de adoção, e nem mesmo a diretiva de retenção de dados, declarada ilegal e que fazia referência apenas aos mesmos registros mencionados no MCI, incluem retenção de conteúdo. Se falamos em jurisdições nacionais, lembramos do pronunciamento, em 12 de janeiro de 2015, do primeiro-ministro inglês David Cameron, abordando o problema de maneira claríssima, ao perguntar: “Em nosso país, queremos permitir um meio de comunicação que mesmo in extremis, com um mandado assinado pelo Secretário de Estado, não possamos ler?” Ou seja, o aplicativo funciona do mesmo jeito no mundo inteiro, o conteúdo atualmente não é monitorado, acessado nem entregue em país algum, e opção de criptografia utilizada, mesmo que as mensagens estivessem disponíveis, inviabilizaria o acesso prático para fins de investigação. A questão é mundial e é uniforme, mas não está nas normas de proteção de dados nem nas que garantem direitos ou liberdades em ambientes digitais. É necessariamente matéria penal.

    Compreendo a dificuldade, a angústia até dos integrantes do Judiciário nessa batalha contra a criminalidade tão cruel no Brasil, mas é importante alertar para o fato de que mesmo enfrentando os mesmos problemas tecnológicos e as mesmas restrições, nenhuma magistratura de nenhuma grande democracia do mundo tem tomado medidas tão agressivas, tão disruptivas e com efeitos colaterais ilegítimos tão amplos como a brasileira, e ainda distorcendo exatamente o MCI, a norma que impede essas medidas.

    A pergunta do primeiro-ministro David Cameron é a que fazemos todos hoje em dia, porque para todos os meios de comunicação historicamente disponíveis até agora havia muito claramente uma exceção facilmente implementável em caso de necessidade/utilidade/interesse de quebra da regra geral de sigilo e de monitoramento. O modelo técnico recentemente adotado pelo WhatsApp endurece estas exceções, muitas vezes até as inviabiliza e sua relativização pode pôr em cheque a segurança de comunicações que se realizam numa escala sem precedentes, com riscos também sem precedentes para os usuários legítimos.

  • Dirceu Pereira de Santa Rosa
    Dirceu Pereira de Santa Rosa em 04/05/2016

    Em 1º. lugar, cumpre destacar e louvar a iniciativa do OMCI em tornar pública esta decisão. Trata-se de um caso de repercussão internacional, no qual se discute não apenas questões envolvendo a seara criminal mas, principalmente, a correta aplicação e interpretação dos dispositivos do Marco Civil da Internet, e se os mesmos são eficientes.

    A decisão do Des. Ricardo Mucio Lima foi bastante incisiva. Não há como realmente justificar a suspensão e/ou o bloqueio de um aplicativo por 72 horas como uma espécie de punição ao seu provedor pelo descumprimento (ou impossibilidade de cumprir) de uma ordem judicial para "quebra" de sigilo de dados e/ou obtenção de informações (no caso específico, acredita-se que o Juízo de Lagarto solicitou arquivos com mensagens trocadas entre usuários do aplicativo WhatsApp durante um período predeterminado e anterior à solicitação judicial.

    Ao menos, em fls. 2 da decisão, temos uma "pista" do que aparentemente o Juízo da Lagarto solicitou à WhatsApp Inc. (ou ao Facebook do Brasil) e que não foi entregue a contento. Também podemos ver, na visão do Impetrante transmitida pelo Desembargador, as justificativas para o não-cumprimento da referida ordem. Pela leitura de fls. 2 e 3, é possível crer que a decisão do Juízo de Lagarto tenha se baseado em uma interpretação erronea do Marco Civil, em conjunto com a Lei 9296/96 (que discorre sobre as interceptações telefonicas e telemáticas).

    De fato, ainda que possam existir pedidos de interceptação e/ou quebra de sigilo telefonico, os mesmos são limitados às possibilidades realisticas de cumprimento de cada ordem judicial.

    Mesmo um cidadão com menos conhecimento sobre tecnologia certamente entenderia que uma escuta telefônica só pode ser iniciada a partir da data do pedido. E que a operadora de telefonia tenha, talvez, dados sobre data e horário de telefonemas. Mas certamente a operadora de telefonia não seria leviana a ponto de, por conta própria, gravar conversas telefônicas de todos os seus usuários e mantê-las, em arquivos ou servidores.

    Se voltarmos ao ano de 1996, imagnem quantos milhares de rolos de fita e quanta tecnologia seria necessária para gravar ligações telefônicas de milhões de usuários, e mantê-las em backup apenas para que, se necessário for, uma autoridade judicial poder checá-las.

    E lembremos que, em 1996, ainda estavamos no início do processo de privatização das telecomunicações. Que empresa internacional investirtia em telefonia no Brasil sabendo que precisaria fazer investimentos de milhões de reais em backups em fita, sem sequer saber seu uso.

    Saindo de 1996 e chegando no nosso ano de 2016, vemos um importante motivo pelo qual a Lei das Interceptações Telefônicas e o Marco Civil se encaixam apenas em condições muito específicas. O Marco Civil não exige do provedor de conteúdo a guarda ampla e irrestrita de conteúdos que trafegam por seus aplicativos, inclusive antes de um pedido judicial.

    Assim como na interpretação telefônica, deve-se levar em conta a realidade tecnológica, e os fatos como são. Em fls. 3 da decisão, menciona-se "fornecimento irrestrito das conversas de texto, fotografias, vídeos, conversas de voz, agendas de contatos, bem como conteúdo dos grupos nos quais os envolvidos participavam". Ou seja, seria como pedir a uma operadora de telefonia que fornecesse gravações de conversas que já ocorreram e não foram gravadas.

    Por isso mesmo, a decisão em fls. 4 já aborda diretamente o problema, replicando o Marco Civil e compreendendo que o mesmo é o necessário, e atual, balizador de um eventual pedido de informações envolvendo dados e/ou conteúdo disponível via Internet.

    E em fls. 5-6, o Desembargador aborda o ponto nevráligco do debate, e a fundamentação principal de sua decisão: " é que o caos social gerado pela interrupção dos serviços de whatsapp, acrescenta mais um princípio constitucional à disputa principiológica já referida (sigilo x bem comum x acesso à informação). É certo que a Justiça, ao decretar a interrupção dos serviços de whatsapp, o está fazendo como punição para garantir o bem comum. Este mesmo bem comum deve ser resguardado com o desembaraço no uso da internet e das comunicações."

    E finalmente, o Desembargador afirma : "Não desconheço as razões lançadas pelo Desembargador Cezário Siqueira Neto ao indeferir a liminar, mas considero que as mesmas adentram, fortemente, ao mérito e que, em sede de liminar, a dúvida a respeito da eficiência da medida e a garantia do bem comum, fazem surgir o periculum in mora necessário à concessão da medida, tendo em vista que há choque de princípios no direito articulado."

    Apesar da decisão de reconsideração ter sido muito comemorada nas redes sociais, é necessário ter prudência. Note-se que ainda há um longo caminho de maturação no debate sobre a aplicação do Marco Civil e como aplicá-lo de forma eficaz. Desde o famoso caso "Secret", o Marco Civil vem sendo confrontado na seara criminal por quem prefere que o Judiciário exerça uma espécie de "poder de controle" sobre a internet brasileira. E infelizmente, creio que este não será nem o . e nem o único caso em que veremos este conflito na prática.

    Ao menos aqui, a decisão levou em conta que o interesse de milhões de brasileiros que utilizam o WhatsApp estava sendo prejudicado por uma medida talvez excessiva, e que certamente não atingiu efeitos maiores do que uma punição indireta aos usuários do aplicativo. Mas o que me preocupa é uma frase de fls. 6 da decisão, ao discorrer sobre as decisões de . grau no caso: "Certo é que o recado já foi dado até aqui". Que recado o Poder Legislativo, a advocacia, os provedores de serviços de Internet e a sociedade civil como um todo, podem dar ao Judiciário para que conflitos como este sejam evitados no futuro??

    Veremos nos próximos capítulos.

  • Bernardo Menicucci Grossi
    Bernardo Menicucci Grossi em 04/05/2016

    A polêmica decisão que determinou a suspensão dos serviços do aplicativo WhatsApp no país decorreu, aparentemente, do descumprimento de uma ordem judicial para que fosse feito o monitoramento do tráfego de dados entre acusados de cometer o delito de tráfico de drogas.

    Uma questão muito bem levantada pela reconsideração diz respeito à necessária comprovação de que, tecnicamente, é possível ao WhatsApp Inc realizar a interceptação e decriptação dos dados? - pois sua alegação é a de que a tutela deferida constitui medida impossível de ser realizada.

    Considerando-se a verossimilhança deste argumento, parece-nos evidente que a questão reclama dilação probatória e realmente não é compatível com a brevidade e superficialidade da cognição sumária.

    Também parece conveniente ressaltar que não se estava a exigir o fornecimento de dados passados, os quais não são armazenados pelo intermediário da aplicação, mas da determinação positiva de que fiscalize, colete dados e, posteriormente, os forneça ao Judiciário, em clara analogia ao popular "grampo" realizado pelas operadoras de telefonia.

    Talvez tenha faltado perceber que a camada na qual a aplicação opera realmente não se confunde com os serviços de telecomunicação, e que existem questões técnicas de alta indagação que precisam ser esclarecidas quanto a sua viabilidade.

    Mais a mais, o próprio Marco Civil da Internet (artigo 2°, II) reconhece que a cidadania, hoje, é exercida através do acesso à internet. E não se poderia olvidar de que a sociedade passa, cada vez mais, a praticar os atos da vida civil através da própria rede - eventualmente com tais aplicações.

    São comuns os exemplos de pessoas que se relacionam, trocam informações profissionais, prestam serviços e vendem mercadorias através de aplicativos como o WhatsApp - que tem aproximadamente 100 milhões de usuários brasileiros.

    Neste contexto, os princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade já recomendariam, antes mesmo do Marco Civil da Internet, a não prejudicar toda uma coletividade (que não é parte naquela relação processual). Ao adotar tão exacerbada medida, não se poderia desconsiderar a enorme repercussão econômica e social gerada pela sua efetivação. Ainda que quaisquer intermediários estejam sujeitos à eficácia das Leis brasileiras, a suspensão de atividades é incompatível com o próprio Marco Civil da Internet, especialmente quando existam outras medidas aptas à continuidade das investigações e, inclusive, de sanção àquele que deliberadamente descumprir ordem judicial.

    Parece-me, portanto, que a decisão parte de uma sensível incompreensão de aspectos técnicos, e de uma presunção de aplicação a quaisquer particulares das diretrizes da Lei 9.296/96, que trata da interceptação telefônica.

    O artigo 7° da Lei 9.296/96 estabelece que, uma vez definida a interceptação para fins de investigação criminal, a autoridade policial poderá requisitar "serviços e técnicos especializados às concessionárias de serviço público".

    No caso ora analisado, WhatsApp Inc não tem concessão ou autorização para operar o serviço de telecomunicação, pois fornece apenas aplicação.

    Devido à reincidência de tais decisões do Judiciário, talvez seja importante lembrar que, neste caso, "É proibido proibir". E, embora haja desnecessidade, talvez a nossa cultura civilista de tradição romano-germânica ainda necessite de alteração da Lei 12.965/14 para que nela conste expressamente a garantia de que serviços ou atividades não serão suspensos sem ampla comprovação da possibilidade de atendimento à ordem judicial.