Remoção de vídeos ofensivos a religiões

Data do Julgamento:
09/05/2018

Data da Publicação:
18/05/2018

Tribunal ou Vara: Tribunal Regional Federal da 2ª Região - TRF2

Tipo de recurso/Ação: Apelação Cível

Número do Processo (Original/CNJ): 0101043-94.2014.4.02.0000 e 0004747-33.2014.4.02.5101

Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Juiz Federal conv. Flavio Oliveira Lucas

Câmara/Turma: 7ª Turma Especializada III

Artigos do MCI mencionados:

Artigo 10 e artigo 19

Ementa:

"ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIVULGAÇÃO DE VÍDEOS DE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA. DANOS MORAIS COLETIVOS. DIREITOS DIFUSOS. RESPONSABILIDADE DO PROVEDOR DE ACESSO À APLICAÇÃO.
1. Devolvido, por força da remessa necessária e da apelação, tão somente o capítulo da sentença que julgou improcedente o pedido de condenação da apelada à reparação dos danos morais coletivos que seriam decorrentes de sua omissão na tomada de medidas necessárias à indiponibilização de vídeos cujo teor encerram intolerância religiosa.
2. As violações aos direitos transindividuais são indenizáveis, consistindo o dano moral coletivo na injusta lesão da esfera moral de um dado grupo de pessoas, determinável ou indeterminável, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos (STJ, REsp nº 1.057.274/RS). Equivocada a sentença ao concluir que, ante a natureza difusa dos interesses tutelados com a presente demanda - liberdade de consciência e de crença e vedação à intolerância e discriminação religiosa -, descabida a condenação à reparação de dano moral coletivo.
3. O Superior Tribunal de Justiça, anteriormente à edição da Lei nº 12.965/2014, que instituiu o “Marco Civil da Internet”, já reconhecia que não é da natureza do serviço de compartilhamento de vídeos a análise prévia dos conteúdos que são publicados nos canais de seus usuários (STJ, REsp nº 1.403.749/GO).
4. Anteriormente à Lei nº 12.965/2014, já existia vertente no sentido de que somente haveria responsabilidade da provedora de acesso às aplicações quando se mantivesse omissa na exclusão dos vídeos ilegais/ofensivos após determinação judicial, sendo esta a corrente consagrada pela referida lei (art. 19, caput), pelo que não há falar em responsabilização da apelada que, tão logo deferida a antecipação da tutela recursal no AG nº 0101043-94.2014.4.02.0000, promoveu a exclusão dos vídeos.
5. Embora o STJ dispensasse a precedência de determinação judicial para a responsabilização do provedor de acesso, o Tribunal Superior já consignou que "cabe ao provedor, o mais breve possível, dar uma solução final para o caso, confirmando a remoção definitiva do vídeo de conteúdo ofensivo ou, ausente indício de ilegalidade, recolocando-o no ar (g.n.)..." (REsp 1403749/GO). Não há falar em omissão da apelada que, tão logo oficiada pelo MPF, analisou o conteúdo dos vídeos concluindo por mantê-los disponíveis aos usuários por entender que estavam protegidos pela liberdade de expressão e religiosa.
6. A Lei nº 12.965/2014, ao estabelecer que só há responsabilidade civil do provedor após descumprimento de ordem judicial, o fez, como expresso no art.19, “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”. A apelada, igualmente atentando para a liberdade de expressão (e religiosa) e para vedação à censura, em hipótese assaz tênue - enquadramento do teor dos vídeos, em sua maioria de cultos religiosos protestantes, como intolerância religiosa - concluiu pela manutenção dos vídeos até ulterior determinação judicial, o que, por si só, não é suficiente à sua responsabilização civil.
7. Remessa necessária e apelação desprovidas."

  • Victor Hugo Pereira Gonçalves
    Victor Hugo Pereira Gonçalves em 12/05/2015

    A presente decisão de acolhimento da tutela antecipada, referente ao pedido de retirada de vídeos ofensivos às religiões afrobrasileiras, é uma conquista dos negros, suas tradições e cultura. E é interessante ver como o Marco Civil da Internet, bem como a adoção da temática dos direitos humanos, são parte deste processo de conquistas e transformação da sociedade brasileira. Aliás, é a primeira decisão do TRF 2ª Região acerca de um caso relacionado ao Marco Civil, mesmo após quase um ano de sua vigência.

    Estas conquistas não foram frutos somente das lutas dos negros, mas também de uma mudança lenta e gradual do Poder Judiciário, que passou a aplicar a teoria dos direitos humanos no contexto das tecnologias de informação e comunicação. Logicamente que nem tudo são flores, há problemas a serem melhor desenvolvidos e compreendidos, principalmente no que tange principalmente ao tema da dignidade da pessoa humana. Por isto que, no voto do relator, houve o carinho de se analisar todo o arcabouço doutrinário e legislativo acerca da desta matéria. Este acórdão é o começo de uma mudança e teve a intenção de servir como exemplo para futuras decisões de primeira e segunda instância.

    Ao se analisar o voto do relator, percebe-se o cuidado de se definir como podem os vídeos vir a ofender e desqualificar um determinado grupo específico, religioso ou não, e como eles podem ferir frontalmente o direito à dignidade da pessoa humana, que está inserto no art. 1º, inc. III, da Constituição Federal. Aliás, cabe aqui rever a lição de Ingo Wolfgang Sarlett sobre a dignidade da pessoa humana, que é:
     

    “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.” (Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2001, p. 60)


    É evidente que um vídeo ofensivo e degradante sobre uma religião, orientação sexual, raça ou gênero afeta por demais o equilíbrio, o respeito e consideração que todos devem ter para consigo mesmos e para com os seus semelhantes. Ao se imputar a si mesmo o direito de desqualificar uma religião ou atividade religiosa, por considerá-la bárbara ou herética, intenciona atribuir um conceito negativo àqueles que cultuam as religiões afrobrasileiras. Este atributo negativo, que é histórico e cumulativo, pois refere-se também ao preconceito racial contra negros que cultuam estas religiões, insere-se como marca de ferro na vida daquele que é desqualificado, tornando-o objeto de ações ofensivas à sua dignidade.

    São vários os exemplos na História de como a atribuição negativa a um povo, a uma religião ou a orientações sexuais diversas da maioria, tornam-se altamente exclusivas de apropriação de direitos e conquistas sociais por quem é desqualificado. Homossexuais, mulheres, negros, católicos, muçulmanos são perseguidos e, não raro, mortos por não se adequarem aos ditames da maioria. No caso da discriminação das religiões afrobrasileiras, os próprios negros atacam a religião de seus antepassados, pela atribuição histórica, social e cultural negativa.

    Diante disto, para que conseguissem se inserir no contexto da sociedade brasileira, os negros assumiram e assimilaram a religião de seus opressores, o catolicismo. Assim, o sincretismo religioso entre catolicismo e religiões afrobrasileiras, em que se misturam as matrizes e os conceitos (por exemplo, Ogun seria o mesmo que São Jorge) é significativo deste processo de desqualificação do povo e sua cultura. Sob esta ótica, qualquer ferramenta de propaganda deste ideal de degradação de seres humanos e suas opções são estratégias de manutenção desta opressão.

    Em vista deste caráter negativo, incentivados pela Convenção de Durban contra o Racismo, onde o governo brasileiro reconheceu o débito da sociedade brasileira com os negros e suas tradições, o CNJ adotou cotas de 20% para servidores negros. Neste mesmo ato de adoção das cotas, o Min. Ricardo Lewandovski admitiu que somente 1,4% dos magistrados são negros e isto deveria ser corrigido. O caminho da mudança é lento e gradual, mas vem sendo construído por meio de decisões judiciais e administrativas como esta da retirada de vídeo ofensivo às religiões afrobrasileiras.

    O acórdão, para fundamentar a retirada do vídeo, reconstrói em sua análise, a lógica de ponderação entre os direitos fundamentais, tal como preconizado por Robert Alexy e defendido por Virgílio Afonso da Silva, e circunscreve os vídeos publicados dentro dos discursos de ódio não protegidos pelo direito constitucional de liberdade de expressão. Reconhece que os vídeos são por demais ofensivos e fomentadores de ódio entre as pessoas e que a manutenção deles seria perpetuar os seus danos para a sociedade, o que agiu com correção diante da gravidade e urgência social para o respeito à diversidade.

    Sob o critério de ponderação, há diminuição do valor da multa de 500 mil reais para 50 mil reais. Contudo, por mais que à primeira vista seja excessivo o valor pedido, existe um caráter educativo na medida, que deveria ser levado em conta. Neste caso, a multa é o único meio de se efetivar a tutela concedida. A retirada dos vídeos da internet é questão de gravidade e urgência, pois há uma agressão frontal à pessoas e tradições culturais que devem ser protegidas contra o discurso de ódio e intolerância. A Constituição Federal assim o determina. Neste sentido, a concessão da multa diária não tem como condão a obtenção da vantagem financeira, mas sim o cumprimento da decisão judicial. Mesmo se analisarmos sob a luz da razoabilidade e proporcionalidade, tal como defendido na ementa, a estipulação da multa em valor alto é uma medida de urgência que o fato necessita.

    Por outro lado, a fim de se construir maior efetividade às decisões judiciais, é necessário que o Poder Judiciário se aproprie de todas as ferramentas fornecidas pelo Marco Civil, como forma de se evitar somente o uso de uma única ferramenta que é a multa pecuniária. O art. 12 do Marco Civil estipula outras sanções em caso de descumprimento que podem ser utilizadas cumulativamente ou alternadamente. Em nenhum momento, o pedido do MPF se atenta para o art. 12 do Marco Civil nem a decisão sequer o menciona, o que poderia justificar a diminuição dos valores de multa pedidos, respeitando a razoabilidade e a proporcionalidade.

    O voto analisa o pedido feito pelo MPF de que seja o Google determinado “a fornecer informações sobre a data, hora, local e número do IP dos computadores que foram utilizados para postar os referidos vídeos”. O relator não crê que estão preenchidos os requisitos da concessão deste pedido, mas não aponta qual são os fundamentos de sua decisão. Assim, não há fundamentação constitucional desta decisão, o que deveria ser feito, para que o caráter educativo servisse de orientação para outros julgados.

    Contudo, mesmo não acreditando no cumprimento dos pressupostos legais, há no voto determina o armazenamento destas informações. Contudo, o art. 10 do Marco Civil, em redação problemática que deveria ser melhor definida na regulamentação da lei, não estabelece quais serão os procedimentos de segurança a serem aplicados à guarda e armazenamento destas informações. Quem ficará com a custódia destas informações? O Google, o Poder Judiciário, o MPF? Serão guardadas estas informações mediante chave criptográfica? Qual? E, mais importante, que não foi discutido pelo v. acórdão, as informações de IP são sigilosas e relacionadas à privacidade, não podendo ser expostas? Espera-se que o juiz de primeira instância possa sanar estas questões procedimentais de alta relevância.

    Os direitos humanos, insertos em todo o texto do Marco Civil, podem ser ferramentas de transformação social, bem como de análise jurídica e fundamentos para decisões jurisdicionais, tais como este acórdão que inicia um movimento salutar do Poder Judiciário de revisão de um processo histórico negativo contra os negros e suas tradições religiosas.