"Selfie" e renúncia a direito individual

Data do Julgamento:
06/12/2016

Data da Publicação:
12/12/2016

Tribunal ou Vara: Tribunal de Justiça do Distrito Federal - TJDFT

Tipo de recurso/Ação: Recurso Inominado

Número do Processo (Original/CNJ): 0004036-73.2015.8.07.0007

Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Des. Fernando Antonio Tavernard Lima

Câmara/Turma: 3ª Turma Recursal

Artigos do MCI mencionados:

Artigo 7º, I

Ementa:

"CIVIL. DIREITO PROTETIVO À IMAGEM. DIVULGAÇÃO DE "SELFIE" A CONSTITUIR APARENTE RENÚNCIA A ESSE DIREITO. LIBERDADE DE IMPRENSA NA DIVULGAÇÃO DA MÍDIA, QUE FUNDAMENTA MATÉRIA JORNALÍSTICA ATINENTE A UMA OPERAÇÃO POLICIAL. NÃO OBSERVADA VIOLAÇÃO À INTIMIDADE DA PESSOA. PONDERAÇÃO DOS VALORES CONSTITUCIONAIS AO CASO CONCRETO. I. Nos tempos atuais, quanto maior o desenvolvimento tecnológico da computação, maior risco experimenta a proteção dos direitos individuais, especialmente o de imagem, objeto de constante divulgação (e exploração) na "internet". Nessa interface, ganha projeção o que a doutrina alemã denomina de "direito de determinação sobre os próprios dados pessoais" ("die informationelle Selbstbestimmung"). Ou seja, compete ao indivíduo o direito de dispor sobre os dados (informes ou mídias) referentes à sua própria pessoa. Aqui, os dados pessoais são compreendidos não apenas os cadastrais, senão também aqueles no curso da telecomunicação-telemática. Com isso, estende-se a proteção à vida privada, à privacidade, à intimidade, à honra e à própria imagem do indivíduo. Logo, a limitação desses aspectos ao desenvolvimento da personalidade só podem estar presentes em determinadas situações legais (v.g., persecução penal), sobretudo após o marco civil regulador da "internet" (Lei n. 12.965, de 23.4.2014, art. 7º, I), com exceção da própria renúncia (tácita ou expressa) exercida pela pessoa titular desse direito. II. No caso concreto, o próprio agente (ora recorrido), aparentemente no curso de operação policial, teria tirado uma "selfie". Isolada alegação do recorrido de voluntária transmissão da respectiva imagem a um grupo formado por policiais. Não elucidada a circunstância de disposição dessa mídia na "internet". Renúncia ao citado "direito de determinação sobre os próprios dados pessoais". Respectiva imagem, que não expõe aspectos centrais da vida privada (intimidade) do recorrente, objeto de reportagem no sítio "radar on line da veja.com.", sob o título "Registro da ocorrência". No ponto, não se extrai qualquer responsabilidade da recorrente na captação da mídia, livremente disposta na "internet", e a utilizar para fins jornalísticos. III. Ademais, a fotografia ("sem cortes") e a correspondente matéria jornalística estariam dentro de um espectro do exercício regular e ponderado da liberdade da imprensa, porque a) o recorrido agia na qualidade de servidor público e em área pública; b) há notícia de concomitante ocorrência de grave delito (sequestro), em cuja respectiva apuração policial, o recorrente poderia estar em atividade; c) a imagem do "selfie" não teria experimentado qualquer adulteração ou falsificação ou (re)montagem; d) para preservar a própria imagem, bastaria o recorrido ter utilizado bala clava, como sói acontecer nas operações policiais de destaque; e) aparentemente, não se tratava de foto para "registro de informações técnicas e de estudo de posicionamento enviada para um grupo de exclusivo de policiais envolvidos na operação" (f.7), até porque essa circunstância não foi comprovada; f) a experiência comum revela que um "selfie" não é o meio mais comum para esse desiderato (Lei n. 9.099/95, art. 5º); g) exatamente por ser uma situação extraordinária é que veio a ser classificada como "inconveniente" pela direção policial (f. 132). Em outros termos, a divulgação da aludida imagem, sem cortes (como disponibilizada na "internet") (necessidade), é que conferia credibilidade ao inusitado fato noticiado, tornando-se, pois, aspecto essencial à matéria jornalística (adequação), a qual não teria ultrapassado o campo do excesso, a não configurar violação ao princípio da proporcionalidade (em sentido estrito), uma vez que não foram inseridos ou explorados outros dados pessoais do ora recorrido. IV. E quanto ao conteúdo da matéria jornalística, a começar pelo título ("Registro da ocorrência"), observa-se no desenrolar do historiado, um texto que retrata os fatos (aparente posicionamento de duas pessoas, com trajes e instrumentos policiais, num teto de edifício) com extraordinária "fina ironia". Eis o teor: "Enquanto as forças de segurança do Distrito Federal não piscavam os olhos e o país acompanhava pela televisão o sequestro do mensageiro de um hotel, ontem, em Brasília, parte da turma da Polícia Civil concentrava-se no que, de fato, considera importante: o registro da ocorrência. Um policial, aparentemente atirador de elite, destacado em cima do prédio vizinho ao edifício onde ocorria o crime, sacou uma de suas armas: o telefone celular. Virou a cabeça para o lado e, pimba, fez um selfie. A imagem, com outro policial ao fundo segurando uma arma, já começou a correr solta nas redes sociais e, lógico, gerar todo tipo de piada" (f. 123). No particular, há uma correspondência do caráter extraordinário, tanto da "ironia" (matéria), quanto do fato reportado. Ademais, a tirada jornalística não fez qualquer menção à qualificação do ora recorrido, nem à sua competência ou honra profissional, muito menos lançou adjetivos ou dúvidas sobre a imagem, isoladamente considerada. Logo, o tom crítico teria sido proporcional, à época da retratação dos fatos, à inusitada situação documentada. V. Em síntese, não se observa, pois, violação à vida privada, à intimidade e aos atributos da personalidade, especialmente o direito à honra e à imagem do recorrido, tendo a recorrente atuado dentro dos padrões da razoabilidade em cumprir seu mister de informar à época dos fatos (CF, art. 5º, IV, IX, XIV e art. 220, caput, §§ 1º e 2º). VI. Por fim, não se dessume interesse público, em se permitir a continuidade de exploração da imagem (e consequente matéria jornalística), como tal captada e noticiada pela recorrente, se a parte interessada (ora recorrido) agora alega constrangimento profissional, o que é factível em razão do longo período ao fato documentado. Caso contrário, se teria uma insuficiência à concretude da proteção dos "dados pessoais". Nesse contexto, o recorrido faz jus ao esquecimento (direito comparado: Acórdão C-131/12, Tribunal de Justiça da União Europeia). Cristalino, pois, o direito do recorrido ao esquecimento de tal reportagem, uma vez que estão ausentes razões especiais como o papel desempenhado pela recorrida na vida pública a justificar um interesse preponderante do público em ter acesso a tal matéria (precedente: TJDFT, Acórdão n. 908629, 1ª T. Cível, em 19.11.2015). No ponto, a sentença deve ser mantida por seus próprios fundamentos. Recurso conhecido e parcialmente provido. Excluída a condenação de danos morais e respectiva publicação, na íntegra, da sentença condenatória. Mantida, no entanto, a obrigação à exclusão da matéria e da imagem, como reportadas, do sítio eletrônico da requerida (item "b" - f. 141-v), em atenção ao "direito ao esquecimento". Sem custas, nem honorários (Lei n. 9.099/95, art. 46 e 55)."

  • Alexandre Pacheco da Silva
    Alexandre Pacheco da Silva em 28/01/2017

    (* com a colaboração do pesquisador Carlos A. Liguori Filho)

    A decisão em análise cuida de um recorrente conflito envolvendo direitos da personalidade: direito de imagem e liberdade de imprensa/liberdade de informação. Desta vez, no entanto, com um toque contemporâneo: a prática da selfie (fotografia que determinada pessoa tira de si mesma) e a divulgação destas imagens publicamente por meio de redes sociais.

    No caso, a selfie foi tirada por um policial da Divisão de Operações Especiais durante uma operação realizada no Distrito Federal: um homem havia invadido o hotel St. Peter e anunciado um "ataque terrorista", tornando reféns diversos dos hóspedes lá presentes. Em algum momento, durante as sete horas de cativeiro, o policial tirou a foto em questão em cima de um dos prédios ao lado do hotel e esta foi parar em diversas redes sociais.

    Pouco tempo depois de sua "viralização", uma matéria do Radar Online (blog da Revista Veja) sobre a imagem foi publicada. Na matéria, o jornalista descreveu a situação em tom irônico e incluiu a selfie do policial na íntegra, sem incluir nenhum mecanismo de preservação da identidade do mesmo.

    De seu lado, o policial alegou que houve violação de seu direito de imagem e que sua associação à reportagem causava-lhe "constrangimento profissional" (p. 4). Solicitou portanto indenização por danos morais e a exclusão da reportagem no blog. Neste sentido questiona-se: justifica-se a utilização da imagem na reportagem, sem autorização do policial, sob o argumento da liberdade de imprensa?

    Em primeiro lugar, vale esclarecer que a disponibilização da selfie nas redes sociais não enseja qualquer tipo de renúncia ao direito de imagem. Prevista no artigo 5º, X da Constituição Federal e no artigo 20 do Código Civil, o direito à própria imagem integra os chamados direitos de personalidade, cujas principais características são irrenunciabilidade e inalienabilidade.

    Neste sentido: "[...] o direito de imagem se configura como "direito autônomo, incidente sobre um objeto específico, cuja disponibilidade é inteira do seu titular e cuja violação se concretiza com o simples uso não consentido ou autorizado" (SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 106). Ou seja, ainda que a imagem esteja disponível na internet, sua utilização indevida - sem autorização do titular - ainda pode ensejar responsabilização por violação ao direito de imagem.

    Apesar disto, o direito de imagem não é absoluto. Diversos outros direitos constitucionais podem eventualmente entrar em conflito em sua tutela, dentre eles destaca-se o direito à liberdade de imprensa, previsto nos artigos 5º, IX e 220 da Constituição. Há, portanto, que se ponderar no caso concreto ambos os direitos fundamentais.

    Nos termos da própria decisão de 1ª instância: "a liberdade de informação da imprensa traz consigo os deveres correlatos de responsabilidade ética e de informar o público de modo objetivo sem atingir qualquer outro direito de outrem constitucionalmente protegido". Neste sentido, o juízo de primeira instância apontou que o jornalista abusou da função informativa ao divulgar a foto do policial e se referir a ele em tom jocoso, condenando os responsáveis pelo blog a tirar a notícia do ar e a pagar 10 mil reais relativos a danos morais.

    O Tribunal, no entanto, reverteu parcialmente a decisão de primeira instância, retirando a condenação por danos morais e mantendo a necessidade de exclusão da página, desta vez com base no chamado "direito ao esquecimento". O Tribunal decidiu que a reportagem em si não era danosa à imagem do policial, e que o tom irônico era direcionado à própria situação documentada como um todo, mas que a alegação de "constrangimento profissional" por parte do policial era consistente e, levando em consideração o "longo período do fato documentado" (p. 4), justificou-se a remoção da notícia.

    Curiosamente, e na contramão do que foi exposto anteriormente, a decisão de 2ª instância relativizou ainda mais o direito de imagem sobre a selfie, excluindo qualquer tipo de responsabilidade por parte do Radar Online: "não se extrai qualquer responsabilidade da recorrente na captação da mídia, livremente disposta na internet, e a utilizar para fins jornalísticos" (p. 2). O desembargador entende que, com a consecução e compartilhamento da foto, o policial estaria renunciando certos direitos sobre sua própria pessoa (pp. 1-2), desconsiderando a impossibilidade de renúncia ou disposição inerentes a direitos de personalidade, como é o caso do direito de imagem.

    Fica a dúvida: se o Radar Online não deve ser responsabilizado civilmente pela reprodução e circulação online da selfie para fins jornalísticos, por que o magistrado reconheceu o direito do policial de remover a notícia? Estaria o magistrado estipulando um prazo de validade para a atividade jornalística?