Fatos públicos reais e liberdade de expressão

Data do Julgamento:
25/06/2015

Data da Publicação:
07/07/2015

Tribunal ou Vara: Tribunal de Justiça do Maranhão - TJMA

Tipo de recurso/Ação: Agravo de Instrumento

Número do Processo (Original/CNJ): 0009086-54.2014.8.10.0000

Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Des. Cleones Carvalho Cunha

Câmara/Turma: 3ª Turma Cível

Artigos do MCI mencionados:

Artigo 3º, I e II; artigo 4º, II.

Ementa:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. CRÍTICA E DIVULGAÇÃO DE FATOS PÚBLICOS REAIS NA INTERNET. PESSOA PÚBLICA. AUSÊNCIA DE CONTEÚDO OFENSIVO. IMPROVIMENTO.
I - A recente Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, denominada Lei do Marco Civil, estabeleceu princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, entre eles a garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal (art. 3º, I) e a proteção da privacidade (art. 3º, II). Nela, também se previu que o uso da internet visa à promoção do acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos (art. 4º. II);
II - [...] não induz responsabilidade civil a publicação de matéria jornalística cujo conteúdo divulgue observações em caráter mordaz ou irônico ou, então, veicule opiniões em tom de crítica severa, dura ou, até, impiedosa, ainda mais se a pessoa a quem tais observações forem dirigidas ostentar a condição de figura pública, investida, ou não, de autoridade, pois, em tal contexto, a liberdade de crítica qualifica-se como verdadeira excludente anímica, apta a afastar o intuito doloso de ofender" (STF - AI: 705630 SC , Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 22/03/2011, Segunda Turma, DJe-065 DIVULG 05-04-2011 PUBLIC 06-04-2011 EMENT VOL-02497-02 PP-00400)
III - agravo não provido."

  • Augusto Tavares Rosa Marcacini
    Augusto Tavares Rosa Marcacini em 31/07/2015

    Decidiu o Tribunal de Justiça do Maranhão recurso relativo a pedido liminar de antecipação de tutela, em que era postulada a remoção de posts publicados em um blog, bem como que o réu fosse impedido de citar o nome do requerente em qualquer comentário futuro. Negada a antecipação pelo juiz de primeiro grau, a questão chegou ao tribunal diante da interposição do recurso de agravo de instrumento, que também foi rejeitado. Entre outros fundamentos utilizados pelo TJMA para denegar a pretensão do requerente, o acórdão faz oportunas referências a disposições do Marco Civil da Internet sobre a liberdade de expressão e o acesso à informação, constantes, respectivamente, dos seus arts. 3º, inc. I, e 4º, inc. II.

    O regime democrático, segundo melhor concepção hoje em voga, é mais do que a mera realização de eleições livres, sendo composto por um conjunto de liberdades essenciais, entre as quais se situa com destaque a liberdade de expressão.

    Somente assegurando o livre fluxo de ideias, e também de críticas, é possível criar um ambiente propício para que o povo possa democraticamente fazer suas escolhas, eleger seus representantes e, especialmente, fiscalizá-los. E a tendência dos países civilizados é a de não reprimir palavras, mesmo que contenham críticas ácidas, mordazes, ou até mesmo injustas. O juiz das palavras alheias deve ser a opinião pública, e não o Poder Judiciário, ou outro órgão estatal qualquer. Para repetir uma feliz expressão, que tão bem sintetiza a essência da liberdade de expressão, palavras se respondem com palavras. E mesmo que se tratem de palavras que possam ser consideradas infames ou nocivas, estas devem ser combatidas com mais palavras, e não com censura.

    O primeiro aspecto indissociável da noção de liberdade de expressão é a vedação à censura, seja ela prévia ou posterior. Afinal, se alguém se investir no poder de determinar quais palavras podem ser ditas em uma sociedade, ou quais podem permanecer públicas, liberdade não há.

    Como afirmado por George Orwell em prefácio proposto à primeira edição inglesa de “Animal Farm” (“A revolução dos bichos”), em 1945, “a liberdade, se é que significa alguma coisa, significa o nosso direito de dizer às pessoas o que não querem ouvir”. De fato, não haveria sentido em assegurar liberdade para dizer aquilo que não incomodasse outrem. Isso seria uma mera faculdade que se esgota na órbita de incidência do próprio emissor, sendo desnecessário mencioná-la no ordenamento jurídico. Direitos ou liberdades permitem comportamentos que causem ou possam causar conflitos com outros sujeitos.

    A Constituição Federal garante que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” e que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5º, incisos IV e IX). Também afirma, logo em seu preâmbulo e no artigo inicial, que o país é um Estado Democrático, entre várias outras referências à democracia ao longo do texto.

    Democracia não é uma situação estática de uma sociedade, mero resultado de cláusulas legais ou constitucionais, mas um estágio evolutivo que se alcança por um longo processo de pressão social e assimilação de seus valores pela população. Nesse sentido, a democracia brasileira, tantas vezes interrompida ou ameaçada por aventuras totalitárias, é ainda jovem e crescente, comparativamente com os demais países de mais longa tradição democrática. Assim, conceitos já bem elaborados naqueles países ainda exigem, no Brasil, que sejam construídos tijolo a tijolo, por meio de intensa atuação da sociedade e das instituições. É somente nesse contexto que se justifica – e se saúda que o faça! – uma lei que precise reforçar, explicitar ou esclarecer aquilo que, para bom entendedor, resultaria por si só das garantias e liberdades constitucionais, ou dos contornos de um regime que se possa verdadeiramente definir como democrático.

    O Marco Civil da Internet, de certo modo, é em grande parte uma reafirmação de garantias e liberdades constitucionais, cuja incidência mais ampla extravasa a própria Internet. Esse é o caso específico das suas normas relativas à liberdade de expressão, que é cinco vezes referida textualmente nessa lei (arts. 2º; 3º, inc. I; 8º; e 19, caput e § 2º), entre outras disposições das quais a defesa da liberdade de expressão pode ser inferida. A insistência em tantas vezes mencioná-la, mais do que espelhar uma democracia robusta, sugere as fraquezas próprias dos adolescentes, que tanto precisam reafirmar sua identidade ou verem-se reconhecidos pelo mundo.

    A recente sinalização dada pelo STF, ao liberar a publicação de biografias não autorizadas, foi um grande passo dado nessa trilha, e que, espera-se, inspire nossos juízes a compreender mais profundamente o significado democrático da liberdade de expressão.

    É nesse contexto que a decisão do TJMA se insere e deve causar regozijo em todos aqueles que, imbuídos do mais profundo espírito democrático, vêm lutando pela plenitude da liberdade de expressão em nosso país, liberdade essa que tantas vezes se vê ameaçada por interesses pessoais e políticos nem sempre republicanos.

    O acórdão comentado reconhece, ademais, que “aqueles que exercem função ou cargo públicos decerto que estão mais expostos às críticas do que as pessoas sem essa notoriedade, de sorte que o direito de crítica afigura-se inafastável da livre manifestação de opinião, representando a verdadeira garantia do exercício da democracia”. Seguiu, portanto, a melhor tendência, ao considerar que um suposto direito à privacidade não pode se constituir em óbice à mais ampla circulação de ideias e de expressão da crítica. Isso é especialmente importante quando os alvos da crítica são agentes públicos, que têm como “patrão” uma sociedade difusa, à qual devem contas, mas somente dando amplos contornos à liberdade de expressão tais agentes podem ser, de fato, controlados. O exercício dessas funções pública é fruto de uma escolha livre, sendo natural supor que tal opção represente uma mitigação do direito ao resguardo de sua honra privada. Quem não suportar tal exposição, que permaneça no setor privado.

    Com mais esse tijolinho assentado pelo TJMA, o prédio em construção de nossa democracia ergueu-se mais um pouco.