Direitos autorais e liberdade de expressão

Data do Julgamento:
06/02/2018

Data da Publicação:
09/02/2018

Tribunal ou Vara: Tribunal de Justiça de Santa Catarina - TJSC

Tipo de recurso/Ação: Apelação Cível

Número do Processo (Original/CNJ): 0000447-46.2016.8.24.0175, 4013653-02.2016.8.24.0000 e

Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Des. Saul Steil

Câmara/Turma: 3ª Câmara de Direito Civil

Artigos do MCI mencionados:

Artigo 19

Ementa:

"APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER C/C INDENIZATÓRIA POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. POSTAGEM DE PARÓDIA MUSICAL NA PLATAFORMA YOUTUBE. REMOÇÃO TEMPORÁRIA DO CONTEÚDO POR SUPOSTA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS AUTORAIS DA OBRA ORIGINAL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO DOS RÉUS.
PRELIMINAR. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA GOOGLE. INSUBSISTÊNCIA. CONDIÇÕES DA AÇÃO QUE DEVEM SER AFERIDAS IN STATUS ASSERTIONIS. AUTOR QUE ATRIBUI ATO ILÍCITO PRÓPRIO À PROVEDORA DE APLICAÇÕES. LEGALIDADE DA CONDUTA POR ELA ADOTADA QUE DIZ RESPEITO AO MÉRITO DA CAUSA. PREFACIAL REJEITADA.
DIREITO AUTORAL. PARÓDIA. LIBERDADE CONFERIDA PELO ART. 47 DA LEI 9.610/98. CONTEÚDO DO AUTOR QUE NÃO CONSTITUI VERDADEIRA REPRODUÇÃO DA OBRA ORIGINAL E TAMPOUCO LHE IMPLICA DESCRÉDITO. EXPLORAÇÃO ECONÔMICA DA OBRA DERIVADA QUE SE MOSTRA IRRELEVANTE. REQUISITO NÃO CONTEMPLADO PELA LEGISLAÇÃO DE REGÊNCIA. PRECEDENTE DO STJ. INEXISTÊNCIA DE CONCORRÊNCIA DESLEAL ENTRE OS CONTEÚDOS E DE CONFUSÃO PELOS POTENCIAIS CONSUMIDORES. VIOLAÇÃO AOS DIREITOS AUTORAIS INEXISTENTES. PEDIDO DE REMOÇÃO DO CONTEÚDO INDEVIDO. ATO ILÍCITO CONFIGURADO. ADMINISTRADORA DA PLATAFORMA YOUTUBE IGUALMENTE RESPONSÁVEL. INDEVIDA REMOÇÃO PROVISÓRIA DO CONTEÚDO MESMO CIENTE DA CONTROVÉRSIA EXISTENTE ENTRE AS PARTES LITIGANTES. PROCEDIMENTO CONTRÁRIO AO QUE PRECONIZA O ART. 19 DO MARCO CIVIL DA INTERNET. DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO QUE DEVE PREVALECER ATÉ DECISÃO JUDICIAL EM SENTIDO CONTRÁRIO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DAS RÉS.
LUCROS CESSANTES. VERBA DEVIDA. AUTOR QUE AUFERE LUCROS PROPORCIONAIS AO NÚMERO DE VISUALIZAÇÕES DE SEUS VÍDEOS, O QUE RESTOU IMPOSSIBILITADO DURANTE O PERÍODO DE INDISPONIBILIZADE DO CONTEÚDO. PREJUÍZO QUE, CONTUDO, DEVE TER SUA QUANTIFICAÇÃO RELEGADA À FASE DE LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA.
DANO MORAL. EXISTÊNCIA. VIOLAÇÃO A DIREITO FUNDAMENTAL DA PESSOA HUMANA, A LIBERDADE DE EXPRESSÃO. SITUAÇÃO QUE EXTRAPOLOU A ESFERA DOS MEROS DISSABORES. QUANTUM INDENIZATÓRIO. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA AOS CRITÉRIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE, ALÉM DAS PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. VALOR ARBITRADO EXCESSIVAMENTE NA ORIGEM. VÍDEO INDISPONIBILIZADO DURANTE CURTO LAPSO TEMPORAL. REDUÇÃO IMPERIOSA. HONORÁRIOS RECURSAIS. FIXAÇÃO CABÍVEL. RECURSOS CONHECIDOS E PARCIALMENTE PROVIDOS.
1. A paródia pode ser definida como "imitação burlesca de obra literária alheia, ou a sua deformação num sentido cômico. Nessa imitação, há perfeita adaptação às situações, ao enredo, às próprias frases, à forma literária, etc, mas em aspecto ou em sentido diverso. A paródia pode, igualmente, ser feita à música. A paródia, no entanto, não é plágio nem reprodução abusiva. É como ensina Clóvis Beviláqua, 'uma criação, um produto de engenho, muito embora inspirado em obra alheia, cujo desenvolvimento acompanha, dando-lhe outra intenção'. A paródia, pois, é permissiva, desde que nela não se faça extrato literal da obra parodiada." (DE PLÁCIDO E SILVA, Oscar Joseph. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001).
2. A Lei 9.610/98 situa a paródia como uma das limitações aos direitos do autor, conferindo-lhe o tratamento de uma criação per si, ainda que derivada de outra obra preexistente.
3. Há de se reconhecer, nessa perspectiva, que toda a gama de direitos patrimoniais e extrapatrimoniais que a legislação outorga ao criador de uma obra em caráter exclusivo não se estende às criações derivadas quando elas caracterizam-se como paródias ou paráfrases e obedecem aos pressupostos elencados pelo art. 47 da Lei 9.610/98.
4. As únicas condições a que a lei sujeita a licitude das paródias são aquelas impostas pelo art. 47 da Lei 9.610/98, isto é, a ausência de verdadeira reprodução da obra originária e de descrédito a ela imputado. Observados tais requisitos, a criação de paródias e paráfrases, nas palavras do legislador, "é livre", inexistindo óbices à sua exploração econômica.
5. A parte que, sob a infundada premissa de ter seus direitos autorais violados, promove denúncia que culmina na posterior exclusão do conteúdo virtual de plataforma destinada a postagem de vídeos ao público, comete ato ilícito.
6. Defrontada com divergência por parte de seus usuários acerca de possível violação a direitos autorais, a provedora de aplicações, havendo dúvida, deve optar por manter o conteúdo ativo até decisão judicial em sentido diverso. Do contrário, age em evidente violação à tutela da liberdade de expressão conferida pelo art. 19 do Marco Civil da Internet, tornando-se corresponsável por eventuais danos decorrentes da indevida remoção do conteúdo.
7. Presume-se o abalo moral daquele que tem sua liberdade de expressão afrontada pela remoção de conteúdo virtual de sua criação sob a infundada acusação de violação a direitos autorais de terceiro, sobretudo quando a produção dessa espécie de mídia constitui o exercício de sua própria atividade profissional."

  • Carlos Augusto Liguori Filho
    Carlos Augusto Liguori Filho em 17/04/2018

    Daniel Santos é dono do canal "Não Famoso", do YouTube, onde produz e compartilha paródias de músicas famosas. Daniel teve um de seus vídeos retirados da plataforma (uma paródia da música 10%, de Maiara e Maraisa) após a agência detentora dos direitos autorais das artistas notificar a plataforma, alegando suposta violação de direito autoral.

    O autor, então, ajuizou acao civel com pedido de antecipação de tutela em face da agência e do provedor de aplicacao (na pessoa da Google), de forma a compeli-las a manter o vídeo no ar e solicitou, ainda, indenização por danos morais e materiais (lucros cessantes) referentes ao período em que o vídeo ficou indisponibilizado. A demanda foi julgada procedente e ambos os réus foram condenados (com redução no valor da indenização após o julgamento em segunda instância).

    Ainda que não seja o foco do presente comentário, vale passar brevemente sobre as questões de direito autoral relativas ao caso. A atual Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) estabelece hipoteses nas quais obras podem ser utilizadas livremente sem necessidade de autorização do autor - as chamadas "Limitações ao Direito Autoral". Trata-se de um rol não muito extenso, com termos pouco claros (como "pequenos trechos"), fonte de inseguranca para quem se aventura a elaborar um "mashup" musical ou uma resenha cinematográfica que utiliza trechos de filmes.

    No entanto, seu artigo 47 diz explicitamente que "são livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito". Neste sentido, a remoção do vídeo paródia foi claramente abusiva e ilegal, independentemente da finalidade lucrativa da obra. Resta analisar, no entanto, a extensão da responsabilidade pela remoção.

    Responsabilidade de intermediários e direito autoral

    Por ter cumprido com a notificação extrajudicial apresentada pelos titulares de direitos da música "10%", a Google alegou ilegitimidade passiva, entendendo que o cumprimento voluntario da solicitacao per se afastaria a responsabilidade da plataforma, sistema que estava incorporado até mesmo nos termos de uso da plataforma. O regime de responsabilizacao civil de intermediários por violação ao direito autoral no Brasil, no entanto, é algo bastante espinhoso.

    O Marco Civil da Internet, em seu artigo 19, estabelece um mecanismo de salvaguarda de responsabilização às plataformas em relação ao conteúdo compartilhado por seus usuários. Neste sentido, o artigo prescreve que os intermediários só podem ser responsabilizados por este tipo de conteúdo se, após ordem judicial específica (seja em sede de medida cautelar, seja em cumprimento de decisao definitiva), recusem-se a removê-lo. Ademais, vale notar que o próprio caput estabelece que este mecanismo de responsabilização tem como objetivo principal "assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura".

    No entanto, ainda que a regra geral consista em um sistema de ordem judicial e remoção, ela não se aplica a violações de direitos autorais, conforme estabelecido no parágrafo 2º do mesmo artigo:
     

    "A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal".
     

    Ocorre que, à época da consulta pública sobre a elaboração do Marco Civil da Internet, visava-se reformar de forma ampla a Lei de Direitos Autorais e, para isso, um anteprojeto de reforma foi elabroado. Entre 2010 e 2011, duas consultas públicas foram realizadas com esta intenção. A responsabilidade de intermediários por atos de terceiros era prevista no APL na forma do artigo 105-A, cujo caput lia:
     

    "Art. 105-A. Os provedores de aplicações de Internet poderão ser responsabilizados solidariamente, nos termos do art. 105, por danos decorrentes da colocação à disposição do público de obras e fonogramas por terceiros, sem autorização de seus titulares, se notificados pelo titular ofendido ou mandatário e não tomarem as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro de prazo razoável, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente."
     

    A ideia era estabelecer um mecanismo de notificação e retirada para este tipo de conteúdo, abertamente inspirado pelo Digital Millenium Copyright Act americano. Neste sentido, caberia ao titular dos direitos autorais notificar a plataforma para que esta removesse o conteúdo supostamente infringente. Ademais, após a remoção, seria facultado ao notificado a possibilidade de realizar uma contranotificação, assumindo para si a responsabilidade pelo conteúdo e voltando a disponibilizar o conteúdo (algo previsto no § 5º deste mesmo artigo).

    A grande questão é que o anteprojeto foi engavetado, e a "previsão legal específica" apontada no art. 19, § 2º do Marco Civil é atualmente inexistente.

    Diante dessa lacuna normativa, o Judiciário vêm consolidando o sistema da notificação e retirada como forma de salvaguarda de responsabilização de intermediários. Decisão bastante relevante neste sentido é o Recurso Especial nº 1.512.647/MG, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em 2015. O voto do relator, Ministro Luís Felipe Salomão, afasta a responsabilidade subsidiária da plataforma e descarta a hipótese de responsabilidade objetiva da plataforma por conta da remoção do conteúdo após a notificação extrajudicial.

    De qualquer maneira, a falta de uma norma específica sobre a responsabilidade de intermediários por violações ao a direitos autorais acarreta um cenário de insegurança jurídica tanto para os próprios intermediários quanto para usuários que publicam vídeos/música/imagens na internet.

    Não clama-se aqui pela positivação do sistema de notificação e retirada em específico, um sistema bastante propenso a abusos por parte de grandes detentores de direito autoral, como o caso analisado e outros, compilados pela plataforma Takedown Hall of Shame, podem demonstrar. Mas é necessária e urgente uma reforma da Lei de Direitos Autorais de forma a adequá-la às novas tecnologias, assegurar a liberdade de expressão e preencher a lacuna deixada pelo Marco Civil da Internet.